sexta-feira, 31 de maio de 2019

A Dama e o Unicórnio




Dei comigo próxima de meia dúzia de pessoas. Ainda que as “filosofias espirituais” digam todas que estamos muito ligados por fios invisíveis, na realidade, isso ultrapassa-me. Mesmo se cada gesto meu tiver uma repercurssão maior, e tem (independentemente do que pensem sobre o assunto), na verdade, apenas meia dúzia de pessoas estão verdadeiramente próximas. Imaginar as repercurssões dos nossos mais pequenos gestos pode ser um passatempo e pode ser uma fantasia. Na verdade, não sabemos. Não sabemos ao certo. Sei que me aconteceram coisas demasiado inusitadas para serem escritas e para serem, sequer, compreendidas. Esperamos sempre que a compreensão faça parte de uma linha de raciocínios, de uma demonstração. Tal coisa não chega para descrever o que me aconteceu. Também podemos compreender as coisas pelo coração (a aí, andamos mais perto), mas, ainda assim, parece o resultado de um filme que nos faz lacrimejar, ou rir, ou outra coisa qualquer. Aquilo que me aconteceu vive em mim numa absoluta e concreta solidão e mesmo que tenha tido muitas “repercurssões”, se é que as teve, a verdade é que, em si, o acontecimento, é único, irrepetível e incompreensivel na sua totalidade. Quando as coisas são grandes demais, são grandes demais. Sei que me alterou muito embora parte do acontecimento fosse uma remeniscência e outra  parte, não o tenha sido. Com aquilo que me conteceu dei por mim próxima de apenas meia dúzia de pessoas. Quando estou com outras que não essa meia dúzia, estou e não estou. Nem quero saber se estou ou não estou. No fundo, não quero saber. A dama transformou-se no unicórnio e quando isso acontece as fronteiras ficam demasiado bem definidas e o fundo da tapeçaria ganha o exacto realce de ser um pano de fundo. O fundo da tapeçaria poderia ser liso, opaco, sem dimensão. Mas não é. O fundo da tapeçaria são essas outras pessoas que não pertencem à meia dúzia. Estão lá, realçadas, no entanto, a cena principal não é essa. É a dama e o unicórnio. E a cerca, e a tenda e pouco mais num jogo simbólico que não necessita de muitos mais símbolos. Não se trata de uma simplificação, de um resumo, de uma abstração, de uma síntese. Trata-se de uma “essencialização”. Não se trata daquilo que é essêncial depois de algo passar pela peneira, é bastante mais do que isso. A “essencialização” é a transmutação em potências. Aquilo que estava em acto regressa à sua origem essencial, à sua essência.

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