sexta-feira, 31 de maio de 2019
O pobre homem
Hoje estava a ver televisão, já nem sei em que canal e estava um pobre homem a falar das desgraças que tinha tido com a crise. Olhei para ele fixamente e tive a ideia de um povo inteiro, chamado "português". Havia aquela educação no olhar da vida dura, de quem tinha nascido e de quem tinham dito "tudo se cria". Havia nele qualquer coisa de ancestral. E lembrei-me, por associação de ideias, de Gil Vicente e daquela dureza nele que não perdoa nem permite... E lembrei-me de Camões que não vacila ao acabar os Lusíadas com a palavra "inveja", e fui-me lembrando dessa dureza que temos para connosco próprios ao longo da literatura e das cadeias de vidas que por este país vão passando. Uma auto-crítica férrea, quase destrutiva. Implacável. Somos, como portugueses, os primeiros a deitarmo-nos abaixo, os primeiros a não nos perdoarmos, os primeiros a condenar-nos. Temos um complexo implícito de que somos Deus, de que nos criamos, de que estragamos tudo e de que nos condenamos. Lançamos os foguetes da anti-festa e vamos apanhar as canas. Uma auto-consciência nítida de que não prestamos, de que "temos o que merecemos" e vivemos com isso, num orgulho camuflado que salta cá para fora quando alguém, de fora, nos crítica. Quando aquele alemão de cadeira de rodas, lá da Europa, disse coisas horríveis de nós, saltámos da cadeira, indignámo-nos. Não permitimos que ninguém nos critique porque nós somos Deus e fazemos o serviço todo. Quem é aquele alemão para tomar o nosso lugar e nos vir insultar? Se fôr um português, tudo bem, agora "um estranho", é corrido à paulada. Os pobres portugueses que somos, resilientes sem ser por espectáculo, constantemente desiludidos consigo próprios, são Deus. E são, efectivamente. Não se trata de um comportamento bi-polar nem coisa que o valha. Coexiste a miséria humana com a consciência da miséria humana (de qualquer tipo que ela seja). É uma coexistência perfeitamente natural na cultura portuguesa. Deus é bom mas nós somos miseráveis, mas somos Deus porque somos os únicos que temos a consciência dessa miséria. Mais ninguém tem, nem pode ter. Por acaso, no Festival da Canção, achei a Madonna mais gordinha. Estava com uma "aura" meio portuguesa enquanto falava com o entrevistador. Não a senti muito à vontade, como é costume, no mundo das divas e dos prémios de música. Parecia desenquadrada da Europa. Tirando a pala no olho, havia nela qualquer coisa de casa de fado. Qualquer coisa de taberna da Ribeira do tempo dos Descobrimentos onde as culturas se misturavam com o vinho. "Querem ver?" Perguntei a mim mesma. "Será que está a ficar portuguesa, será que está a ficar com dúvidas?". É que se está a conversa agora é outra. Ainda se torna numa pobre mulher que é Deus, e lá se vai a Madonna e a mandona. É que se for Madonna, ninguém acredita e se for mandona, ninguém lhe perdoa em Portugal. Se for uma pobre mulher que é Deus, que não acredita que seja a Madonna e que não se perdoa se for mandona, então é portuguesa. Lá que está mais gordinha, está.
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