quinta-feira, 30 de maio de 2019
O pai
Hernâni Taveira, meu pai, morreu quando eu tinha 8 meses, em Inglaterra, onde estudava Belas-Artes e onde nasci. Dele, apenas soube o que a minha mãe me contava. A irmã, Elsa, ficou em Inglaterra onde casou e teve pelo menos um filho. Nunca tentou algum contacto com minha mãe. Não porque estivessem zangadas mas sim por causa do desgosto com a morte do meu pai que atirou a minha mãe para um choro convulsivo durante dois anos. Os meus avós paternos já tinham morrido. Nunca os conheci. Os amigos do casal (a minha mãe e o meu pai), depois da sua morte, afastaram-se. Talvez as amizades não fossem tão diferentes das de hoje e talvez a distância por dois anos em Inglaterra tenha levado igualmente a esse distanciamento. Sobraram poucos desenhos. O meu pai teve uma vida atribulada. Culto, educado no Congo Belga num Colégio de Jesuítas. Dava-se com a intelectualidade da época, onde conheceu a minha mãe. Era generoso e dava muitos desenhos. Quando tinha falta de dinheiro, trocava-os por almoços. Aqui, em Portugal, nessa altura, não se dava importância nem muita atenção a artistas que não fossem da vanguarda "abstracta". Como sempre, tudo o que vinha lá de fora era considerado melhor. Ainda hoje é assim. Deste modo, não tendo sorte por cá, onde deixou a obra dispersa, a maioria por dádivas, consultou o José Augusto França que o aconselhou a ir para Paris ou para Londres estudar porque aí, o seu figurativismo talvez fosse melhor compreendido. Escolheram, ele e a minha mãe, ir para Londres onde foi aceite numa das melhores escolas de Belas Artes só por ter mostrado os desenhos, sem qualquer teste. Viveu pouco tempo. Morreu com 36 anos, asmático desde a infância, doença que lhe roeu os pulmões a pouco e pouco. A minha mãe voltou comigo nos braços, bebé de oito meses. O que me contava dele era sobretudo as parecenças: o nariz, as pernas, o feitio, a introversão, a teimosia. "És igual ao teu pai", era recorrente. Dele sobrou uma cassete onde se ouvia ao longe a voz dele e que perdi nas confusas mudanças de casa a que tenho sido obrigada ao longo da vida. Tenho desenhos dele no corredor. O meu irmão (meio irmão mais novo, filho de outro pai) guarda na casa dele um óleo que fez em Inglaterra. O resto, dispersou-se. Cá, não foi apreciado e sentiu-se com isso. É natural. Foi por isso que foi para Londres, porque também já não aguentava o fascismo e porque queria aprender. Morreu a dias da sua primeira exposição que seria em Maio. Nunca a chegou a fazer. Sei que trago parte dele comigo. O seu silêncio interior, sobretudo. A sua paciência. A sua teimosia. E outras coisas. Deus leva cedo os que ama, dizem. No caso dele, sei que sim.
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