terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Paisagem


Todo este mar, esta planície
renovados pelas esferas
encontram em mim
o meu mar, a minha planície
olham-me por dentro,
unem as nossas raízes
evocam as árvores que somos.
Paisagens sempre nossas,
pintadas pela vida fora
sem que delas tivéssemos sabido,
são ovais, mar, vales e colinas,
e, por dentro, amanheceres livres,
portais das antigas vozes,
pomares escondendo ouro,
azuis de navegar por entre tons
de uma melodia julgada perdida.
Não são sentimento, nem escolha
são o nosso corpo devolvido à grandeza
às sombras que nunca pensámos afastar
ao dia que fazemos acontecer.

(Cynthia Guimarães Taveira)


segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

O Teosofismo




Havia de ser bonito uma Sinarquia de teósofos a mandar no planeta. Acabava tudo ao murro! Ainda era pior do que esta democracia cheia de fissuras por onde entra tudo. O artificialismo teosófico do séc. XIX, produto de um orientalismo, (já de si distorcido) transtornado pelo espiritismo e produto, também, da sede de poder, dá-nos a ideia das belas raízes que têm. Aliás é vê-los desde esse século até hoje, a reclamar "verdadeiros patrimónios" e aos coices com todos os que queiram o território teosófico. Houve quem saísse de lá a dizer que eram todos alucinados (ver "O Teosofismo" de René Guénon), ou quem de lá saísse e fosse formar escola para bem longe (ver Rudolf Steiner). As Sinarquias quando não são suspeitas são pouco duradouras. Imaginar uma Anarquia na qual o Homem é dono de si, é conseguir conceber a Liberdade. O problema da Teosofia é precisar sempre de "pais" e "mães", quem quer que sejam (até podem ser aldrabões encartados), para venerarem, quando a única coisa que há para venerar é Deus e a Sua Obra. A quantidade de mestres do teosofismo que existem hoje é proporcional ao cataclismo social em que o planeta vai mergulhando cada vez mais. E ainda vêm dar lições sobre o "quão vantajosa é a Sinarquia", quando já se viu que o conhecimento, hoje, pode ser qualquer coisa: desde ter o monopólio da informação,  empresarial, do poder, das armas.  O conhecimento nunca foi sinónimo de Poder como nos fazem crer os Sinárquicos. O conhecimento é a aproximação à Libertação, o que é bem diferente... o que há hoje é apenas poder indiscriminado, económico, político, social. As mentes retorcidas imaginam sempre o poder, nunca a liberdade. Isto é típico de pessoas que veneram pessoas. Uma idolatria antropomórfica. A confusão que geram nas pessoas é por demais. E têm e terão cada vez mais sucesso porque é nesse tipo de idolatria antropomórfica que está a raiz das ditaduras. Não é em meia dúzia de berros que alguém possa dar contra a ignorância, a tirania ou o fanatismo. O teósofos correm o risco de nem sequer saberem ler. E querem uma bela Sinarquia de gente que treslê? 

O vandalismo




https://www.publico.pt/2019/12/29/local/noticia/escultura-pedro-cabrita-reis-vandalizada-leca-palmeira-1898754

Há uns meses três das minhas pinturas foram alvo de, mais do que vandaliamo, de destruição. Passou-se em Setembro. Uma mãe de filhos pegou numa pintura minha e cortou-a em pedaços e dois outros, pais de filhos, pegaram em duas pinturas minhas e colocaram-nas no lixo. Tinham sido ofertas. Nunca lhes fiz mal nenhum. Mas o ódio é o ódio e nada há fazer quando assim é. Agora vejo esta notícia. Parece uma resposta barroca. Não gosto de vandalismo. Mas também não gosto de mau gosto. Nem de vandalismo sobre a paisagem e, pelos vistos, cara. Nesta história nada se aproveita. Nem a pseudo-arte, nem o vandalismo, nem o preço da bodega. Estão bem uns para os outros. Felizmente consegui salvar duas das três pinturas. É a única coisa que se aproveita. Na minha história, claro.

Os novos "Santos" indignados



As mães de todos nós e os especialistas em política/futebol que não hesitam em estar quatro horas ou mais a falar-nos do seu "valor", brindaram-me com a indignação depois do texto "galos e galinhas". Existe a indignação "choque" muito apta à espécie galinácea, até pelo nome e existe a outra, lenta, severa, difusa e não menos implacável que é a da verborreia alimentada por quatro horas ou mais. O coro de protestos foi elaborado por "Santos" tolerantes, a pasta amorfa do "amor" (com letra muito pequenina), falando nas virtudes dos galos e das galinhas, tendo por trás o "amor universal" espalhado a quatro ventos como se o tivessem para dar e vender. Não há coisa mais enjoativa do que um santo fabricado nas redes sociais. Os cara-de-livro que se estão Absolutamente nas Tintas para os Outros, em vez de se indignarem com a Total falta de curiosidade dos galos e das galinhas, só pensam nos ovos do devir que porventura irão gerar e donde aparecerão mais galos e galinhas e nada mais. Mas aqui por estas bandas, que são outras e com outra linguagem, pouco santificada pelo neo-espiritualismo requentado, a coisa teve efeito. Depois da minha indignação, dois galinhos, muito bonitos e diferentes, despertaram e perceberam a mensagem. Assim, alteraram o comportamento. Deixaram as galinhas em casa e vieram cumprir o seu dever de gratidão e aprendizagem. Foi pena a ausência das galinhas, mas não se pode ter tudo... quanto aos "santos" indignados, aproveitaram logo a ocasião do texto para exibir as suas penas tolerantes de maneira a inflamarem mais público de admiração e quisá provocarem um "êxtase colectivo" (como vi escrito num jornal local a propósito da Passagem de Ano organizada pela autarquia), à boa maneira das massas nascidas da barriga da propaganda. A minha gratidão nunca irá para eles mas sim para os dois galos que deixaram de o ser quando se aperceberam do que andavam a fazer e ainda para quem um dia berrou muito comigo por saber que só assim se faria ouvir.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Não digo que...



Não digo que não seja o que penso
O que ouço no espelho do universo
Mas se penso e ele brilha e treme
Sorve o que penso sem pensar
Todas as curvas dele são as minhas
Nada do que pensou pensar é falso
A via láctea é o meu abraço
O som do mar o meu espaço
E porém, em todas as esquinas
A escuridão das sombras
Vêem o que pensam que penso
Só por me verem ao passar
Se de boquilha, a escaldante
Se de chinelos, a emigrante
Se a rir, o choro escondido
Se a chorar, uma gargalhada errante
Nada do que penso o universo pensa
Só reflecte a luz do meu pensar
Se pensasse o que deveras penso
Não haveria trevas sem estrelas
Por onde não consegue pensar

(Cynthia Guimarães Taveira)







sábado, 28 de dezembro de 2019

Galos e galinhas


O mundo está um deserto invadido por galos e galinhas. Os galos são os homens que cantam de galo e estragam as conversas. As galinhas, por sua vez, são intensas em qualquer convívio. As estuporadas, no meio de uma conversa sobre filmes, livros ou o que seja que ainda haja de interessante no mundo, começam, como quem não quer a coisa, a falar da "educação" e da "escola" e num abrir e fechar de olhos desbobinam a repisada conversa na qual aparece sempre a vírgula "os meus filhos", e cujo discurso subreptício é sempre o mesmíssimo: "sou uma grande merda intelectual mas sou uma óptima mãe". Não há Natal nem reunião familiar que não fique estragada com os dois espécimes. Aos galos, falta o intelecto porque senão não se "armavam" em donos da capoeira, qualquer que seja (política ou futebolística - todos gostariam de ser comentadores televisivos destes temas), a elas, ninguém lhes diz que se são "uma grande merda" intelectual, nunca poderão vir a ser as super-mães que se auto-especulam. Quanto muito são mãezinhas... E a verdade é que estragam qualquer conversa, todos eles, transformam tudo num enorme filme de quatro horas visto e revisto e de série B. Quando me dou conta que estou numa capoeira (e não apenas num galinheiro), encolho-me toda. Desvio o olhar, ou fico com ele fixo e com um sorriso estupidamente compreensivo (que se está absolutamente nas tintas), chego a cantar para dentro. Sinto-me como nas aulas do secundário, a contar os minutos para sair dali para fora. Quem me vir com esse sorriso fica já a saber que "quero lá saber" se és tu que "dominas" a situação politico-futebolística, ou se és tu a mãe de todos nós. Sinceramente, há coisas mais interessantes no mundo e mais animais. A paranóia das capoeiras é que não; tenho para mim que elas exercem um estranho fascínio nalguns seres. Fora de qualquer brincadeira, encontrei várias pessoas na vida, e isto é factual, não é ironia nem tem duplo sentido, que quando começam a falar de galinhas e de galos não param. O olhar altera-se, fica entre o hipnotizado e o distante, as palavras saem mais lentamente, arrastadas, como se quisessem permanecer naquele mundo cheio de romance eternamente. Falam das galinhas com uma ternura infinita. Ficam suspensos. Descrevem o galinheiro, a capoeira, os problemas que tiveram com o ataque dos cães ou das raposas, a forma como algumas morreram e de como curaram as feridas das feridas. O Tantum amarelo. Os pensos. A recuperação. Ou o que comem. Como andam. Como estão. Enfim, uma intimidade que nem sequer têm com a família. Um fascínio. Uma mútua sedução. Fico de boca aberta a ver o espectáculo quase libidinoso, dos sentimentos que alguns humanos nutrem pelos galos e galinhas. Depois, vou a uma qualquer reunião familiar. E percebo porquê. É o célebre e antiquíssimo conhecimento por "identificação". Que pode dar para tudo... E para o torto. E estragar conversas que deviam caminhar pelos trilhos do que ainda não sabemos e não por essa identificação patética com os galináceos. Eu prefiro pentear macacos. É mais divertido e mais franco. Às vezes não há pachorra para o subconsciente das gentes.

Palavra


(Desenho de Cynthia Guimarães Taveira)


Em conversa com uma amiga constatámos que não temos profissão e que somos olhadas por algumas pessoas como algo estranho e até desprezível. Ela com o curso de engenharia agrícola que nunca exerceu e eu com o curso de antropologia, ainda menos. Se fossemos a julgar as pessoas pelo currículo acabávamos a rir por sabermos que não é o currículo que faz uma pessoa como uma andorinha não faz a Primavera. Por outro lado, se fossemos escrever tudo o que fizemos, um caderno bem grosso não chegava. No mesmo dia, outra amiga, cujo nome antigo significa "Palavra," pediu-me para voltar a pintar. Está bem, eu pinto. Pinto para ficarem as pinturas por aqui, nas divisões da casa, porque o mundo não me quer, só os amigos. Depois de um ano agarrada aos livros a estudar intensamente, a "Palavra" pede para que regresse aos pincéis e sei que em seguida, os pincéis me hão-de pedir para regressar à palavra. E andamos nisto desde sempre. Não tenho é currículo. Quem não tem currículo não tem nada de nada. Mas tem muito de muitas coisas inclassificáveis. Algumas são visíveis apenas para quem quer ver. Outras são absolutamente invisíveis. Mas que las hay, las hay.

São rosas, senhor, são rosas



Frescas são, colhidas hoje
Onde não há poetas, só poesia

A antropologia do novo córtex
Suscitou grande debate nacional
Não discursa, nem aparenta o que não é

Não faz trabalho de campo, nem de quintal
Nao usa muito a razão quando lavra

Não anda por Satã, nem por serpentes
Lembra-se sempre do que lê

Sabe o título e a página
Soletra se tiver de ser

Frescas, tão frescas colhidas hoje
Heréticas e mais rosas por isso

A poesia não precisa de bordéis
Nem de mar ela precisa
Nem de factos ou de vidas copiadas

Nem de bajuladores de génios
Que a sustentem.

Rosas colhidas Hoje
Para sempre frescas junto à Hora

À poesia fresca junto à Fonte
A razão nao vence por não a ver

Só a poesia vê os amores
Que lhe aparece trincar
E levá-los na boca
Como amargas amarelas
Que antes até das amendoeiras
Anunciam a Primavera

O mundo mal acabou de nascer
E já viu a rosa
E ela canta nos sentidos dele
Antes dele ter nascido

O novo córtex da antropologia
É inquebrável
Nasceu do coração
Mergulha na alma
E ascende na coroa

Quem não é poeta
Não sabe dos lugares
Onde não há poetas
Só poesia...

Colhidas Hoje
Junto à Fonte
Nascidas na Hora

Hoje
Fonte
Hora























quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Sinarquia



Quando imagino o Quinto Império, o Império do Espírito Santo ou a Idade do Ouro que será a próxima, não imagino uma Sinarquia onde Homens Superiores modelam Homens Inferiores. Imagino uma verdadeira Anarquia Superior onde cada um é dono de si próprio num mundo mais leve, mais subtil e mais luminoso e onde não é necessária a Iniciação. A Idade do Ouro é a maior em duração e contém em si qualquer coisa de conclusivo e de início perpétuo. Se é conclusiva não necessita de descer a ciclos onde a Sinarquia é necessária para encaminhar os homens. Eles já estão encaminhados. Suspeito sempre de quem defende a Sinarquia como uma espécie de solução definitiva. Neste momento lida o mundo com uma Sinarquia de magnatas, não andamos bem e sabemos que os magnatas nunca irão lançar uma passadeira vermelha para que os homens superiores possam passar e encaminhar os homens. Antes pelo contrário. Aquilo a que se assiste são a sucessivas passadeiras vermelhas onde autênticos fantoches dançam e se esgrimem nas campanhas eleitorais acabando por chegar ao palco onde concluem o espectáculo de desnorte. Para se reconhecer a superioridade há que ser superior. Um magnata reconhece o dinheiro mas não consegue reconhecer mais nada e quando o faz é a título ou de as velhas palavras "muito interessante", o que demonstra que é um interesse passageiro, a título de divertimento ou a título de conseguir ganhar mais poder e dinheiro. Ou seja, não percebe nada. Podemos pensar numa Sinarquia, num governo de alguns, superiores, como forma de transição entre Idades, tornando a passagem cíclica suave e pouco radical. É bom pensar assim. Mas a verdade é que depois de ler umas coisas aquilo que é dito é que há uma passagem por "intervenção divina" do cubo (ponto máximo da matéria grosseira) para o jardim celeste. Isto vem ao encontro da importância da Providência no desenrolar da História. Pensei muito na Providência e cheguei à conclusão de que ela diz muito mais respeito à natureza íntima dos seres do que propriamente à sua história. Se dois seres se encontram e existem pontos coincidentes nas suas histórias isso deve-se, não às histórias em si, mas sim à sua natureza íntima que os levou a determinadas histórias bem como a um entendimento semelhante das mesmas. Inverter isto é colocar o tempo e o devir à frente daquilo que é eterno. Simplesmente não é possível. Assim, quando falamos do próximo ciclo isso parece ser em simultâneo algo de muito complexo e de extremamente simples. Deve haver disposição interior, evidentemente, mas sem uma natureza íntima propícia nada poderá acontecer. E isto nada tem a ver com raças, manipulações genéticas e horrores semelhantes. A natureza íntima escapa-nos porque está no domínio do transcendente (está ideia vanguardista de que dominamos tudo e na qual se confunde a submissão inerente ao domínio com conhecimento é alheia à ideia de fusão, essa sim, o verdadeiro conhecimento) e aquilo que é transcendente, como a palavra indica, transcende-nos. Como se confunde a "humildade" com uma qualidade superior. A humildade implica sempre submissão nem que seja num grau muito pequeno, ela está sempre lá. Nada nos diz que o transcendente requer a humildade. Se requer, é apenas para nos dar a ideia de perfume, não o perfume em si do transcendente. É passageiro. Domínio e humildade facilmente resvalam ou na cegueira do poder ou na ignorância mais resistente e todos conhecemos casos de humildade que escondem a grande vaidade... Assim, se falamos em transcendente outra palavra ocorre: liberdade. Essa, sim, coincide porque aquilo que nos transcende, de facto, é a liberdade, não é o domínio nem a humildade, com esses lidamos nós todos os dias. Com a liberdade é que temos dúvidas, escapa-se das nossas mãos.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Passeios


Passeios feitos de mar e de Saudade.
São o sal d'amor do tudo já ido
O regresso ao mercúrio original
O encontro com o enxofre na noite tão próxima
E a ilha, ao longe somos nós.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Povo



É quando o povo larga a terra e as actividades tradicionais que, a pouco e pouco, se vai transformando na "chungaria". Existem políticos "chungas" vindos de famílias tradicionais decadentes. E existe também uma massa amorfa (e não plástica) que invade todas as esferas. Quando o povo ascende socialmente, mas não intelectualmente, começa a levar os filhos aos McDonald's, a ter aparelhos de tecnologia sofisticada, a ter acesso à fama, à televisão, começa a imitar todos os sinais exteriores de riqueza material e todos os objectivos mais estapafúrdios de vida que se possam imaginar,  como seja "aparecer", ser a "estrela da aldeia", mostrar o novo carro à vizinhança, etc. Quando isso acontece, o povo desaparece e desaparece o seu saber. Esta nova democracia tem como objectivo acabar com o povo e torná-lo um analfabeto militante de ideias sem projectos de vida dignos e, pior, acabar com o seu saber. O povo está em vias de extinção muito mais do que a chamada "classe média" que é um crescente produto híbrido do mercado e uma misturada completa de gente que vive de "conceitos" e para "conceitos" cada vez mais vagos e estereótipados em períodos que coincidem com os da moda, seja ela qual for, Vintage, tecnológica ou mesmo ideológica. Acabando com o povo, acaba-se com um depósito de sabedoria de vida e de experiência. O verdadeiro alvo da democracia é o povo mas não com as melhores intenções. Nos últimos anos tive a oportunidade de poder conviver com o povo e com os "chungas". A diferença é abissal. No primeiro encontrei, sobretudo, curiosidade (é essa a raiz da sua sabedoria), nos segundos, palavra dita em plural devido às sua dispersão geográfica e social, encontrei a total ausência de curiosidade que, facilmente, é substituída pelo "eu acho que", nos casos melhores em que se fica pela opinião, ou por um regime interno verdadeiramente ditatorial de um modo de ser e de estar que são impostos por essa gente aos restantes habitantes do planeta. São esses, os chungas, a matéria prima de todas as ditaduras porque, julgando saber tudo, não têm curiosidade por nada, são meros instrumentos da moda e do tempo, produtos dessas duas coisas ou simplesmente inacabados, com experiência em coisa nenhuma a não ser em casas vazias, sem livros, sem cultura, com um grande écran para ver os jogos, sem actividades que não sejam as mais mecânicas que possam existir, muitas vezes com drogas, sem raízes, sem memória, sem amor. É verdadeiramente assustador. É por aí que a política extremista sem qualquer propósito que não seja o da destruição pela destruição e actuando bastante nas redes sociais (com as quais a chungaria tem uma relação íntima e previligiada) vai fazendo o seu papel bem como as várias anarquias (que nada têm a ver com a Anarquia Superior) espirituais e/ou religiosas, frequentemente de mãos dadas com propostos políticos, e vão cativando aqueles que são ainda mais impostores e falsários das qualidades humanas, do "poder do povo". Não há chunga que queira pertencer ao povo, todos eles se sentem em ascensão. Normalmente estão cheios de direitos e de poucos deveres. O orgulho de um chunga não está no facto de pertencer ao povo está no facto de sentir que já saiu dessa classe social. O orgulho dos chungas nada tem a ver com a dignidade do povo. O povo é sábio, os chungas não. Com o povo pode aprender-se, desaprendendo-se para se voltar a aprender, com os chungas só se desaprende porque não têm absolutamente nada para ensinar. A democracia, regime que na sua origem grega era altamente elitista, quando deixa de o ser, sofre a sua própria auto-destruição. Tem como alvo o povo que quer transformar numa elite sem perceber que o povo já é uma elite. Todas as classe sociais são elites porque são distintas. Essa distinção é a sua personalidade. O seu modo único de ser. A "ascensão" social (que é possível), só é possível com uma ascenção intelectual. Ou seja, uma cada vez maior e mais profunda consciência do que se sabe. Se essa ascensão não for acompanhada por isso não há ascensão nenhuma, aquilo que há é uma regressão que pode raiar a animalidade (no que tem de besta) e uma cada vez maior mecanização (que por definição é desalmada). As duas coisas juntas ficam a um passo da barbárie que vai alimentar sempre as ditaduras. Não se vota por duas razões: ou porque porque se pertence, de facto, a uma elite que não quer colaborar nesta fábrica democrática de chungaria que mais tarde irá desembocar numa qualquer ditadura ou porque se é chunga. Por paradoxal que seja, aí, encontram-se, mas a raiz das duas intenções é totalmente diversa bem como o número: a elite intelectual é pouco numerosa, os chungas são em grande número. Os primeiros sabem quem são e o que querem e o os segundos não sabem quem são nem o querem Os chungas só sabem o que não querem. E não querem a democracia. Querem uma ditadura, não têm é consciência disso, nao sabem disso. À sua imagem e semelhança.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O sofá

Tenho o pensamento cheio de flores, a esperança cheia de borbulhas, a dor pejada de cravos, a sorte com adornos de cristal, a ironia com arquétipos, a ousadia com estames, a compaixão com auroras, e a estrada com salgueiros. Ninguém me leva pela mão para a montanha mas, quando lá chego, a minha presença é anunciada nos jornais.

Disseram-me cá em casa: "a tua pintura não pode competir com uma banana colada na parede". E não. O mundo é dos homens e das mulheres, não da minha pintura.

Envolta numa semana de pinturas na parede, andei ao tombos entre pincéis, explicações (que pouco me interessam) a crianças (com este sistema de ensino nem um cavalo de Tróia consegue alguma vitória), o livro novo sobre Fernando Pessoa, o René Guénon, as porcarias que vou sabendo na televisão às oito da noite religiosamente, como se fosse a missa da conscientização do rumo do mundo em direcção a coisa nenhuma, andei a passear-me pela Ericeira com tinta acetinada pingada no cabelo e a dizer que sim a quem reparava que andava em pinturas, envolta nos cães e nos jantares de todos eles, nas ervilhas com ovos para quatro dias, nos vizinhos que vão zarpar daqui com a malfadada Pit Bill com cara de parva e dentes afiados a ameaçar os meus canídeos, andei, com projectos de desenhos, com mais isto ou aquilo que apanhava para ler, por compulsão, e com as expressões dos outros, bi-polares, ora a desfazerem-se em sorrisos como se vissem Deus quando me viam, ora como bichos à espera de me apanharem desprevenida para me comerem. Uma semana, nesta época, com tudo o que tem para oferecer, vale por uma vida.

Depois, voltaram a dizer-me: "Ninguém percebe nada do que escreves". Pois não, mas escrevo na mesma só para que não percebam. É uma forma de alimentar a ignorância como qualquer outra.

Com sorte chego ao Paraíso. Subo a montanha sem ninguém pela mão. Não levo ninguém comigo porque, ou não vêem ou não ouvem e, lá em cima, são necessárias as duas coisas, como os Pastorinhos...

As épocas das deficiências visionárias coincidem com aquelas nas quais temos tudo debaixo do nariz, mas não vemos. É a época do Carnaval anual, como disse o perenalista. Todos falam a verdade do fundo de si para que Freud, deitado, também no sofá, os oiça e lhes aponte a raiz de todos os males abaixo do umbigo. E até o psicanalista é intoxicado pelo psicanalista que é.

O maldito corta relva aqui do lado quer fazer calar a relva e acorda toda a gente às horas que quer. A relva cresce silenciosa.

De vez em quando vou ver a mascote do esoterismo português que, como o Obelix, e várias gerações inteiras, caiu no caldeirão da teosofia, faço-o só para rebolar a rir. Temos de ir buscar divertimento a qualquer lado. O meu é este. É um pouco melhor do que a telenovela da Rosa Grilo que alimenta o imaginário, também ele, freudiano e diário das donas de casa. Mas os efeitos, provavelmente, são os mesmos, o "thriller", a emoção, a tragédia, o gosto impúdico pelo "amante" legalizado pelo crime.

Fernando Pessoa não jogava xadrez. No programa 'Culto e Oculto" puseram lá uma fotografia que parece ser do poeta a jogar. Ainda estou para saber onde é que foram buscar aquela fotografia, como aparece lá e quem lá está. O mundo está cheio de aldrabices.

Envolta na nuvem que me atinge, como o Cascão do Murilo, vejo-me a braços com o cabelo e com a tinta colada nele.  A esta hora cada um dorme ainda. Cada um enfiado no seu sonho. Somos todos universos únicos sem rosto.

Mas vou ter um sofá às flores. Posso, enfim, deitar-me no meu Paraíso. E que não me chateiem muito. Nem as feministas nem os contra feministas. O meu paraíso é outro. Com tinta colada ao cabelo, armada em empreiteira, sentada num tapete de flores. E bonita.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A amiga


O ensino actual pauta-se pelo profissionalismo. Do professor e do aluno. O professor anda triste e o aluno também. As vocações nunca são "profissionalizantes", são vocações. De maneira que anda tudo triste. E profissional. Há uns tempos escrevi sobre o "conhaque e o trabalho". O meu irmão, que anda no mundo dos "profissionais", disse-me, confirmando esse texto na altura, que também não confiava nessa separação, nessas vírgulas do lema. Até senti um certo consolo por não ser a única a pensar assim. Antigamente, o que existia eram mestres e discípulos. O profissionalismo era uma palavra inexistente. Essa relação era sempre intíma. Não havia separação entre as pessoas e o que faziam. Era mais complicado por um lado e mais humano por outro. Mais verdadeiro. E o que faziam nascia, naturalmente, cheio de verdade. Ontem encontrei uma amiga com quem trabalhei durante três anos. Quase me levantou no ar e eu a ela. Já não a via há dois anos. Falámos como se nos tivéssemos visto ontem. Trabalhamos juntas e com a delicadeza de flores (não, não foi o trabalho de florista, isso foi outra coisa), sentimos tudo o que a outra estava a sentir enquanto trabalhámos. E depois, ficámos com boas recordações, com admiração uma pela outra. Nunca fomos profissionais. Fomos humanas. Se tivéssemos sido profissionais não tínhamos trabalhado tão bem. As regras eram outras. Infrigiamos o profissionalismo se nos apetecia como aqueles polícias que contornam a lei para chegarem a bom porto. Chegámos a bom porto porque confiámos uma na outra. Evidentemente que estamos as duas ligadas às artes. Ela à música, eu à pintura e a outras coisas. Só com essa sensibilidade extra se abandona o profissionalismo que é para os tristes sem vida interior. Um dia ela "apanhou-me" a chorar. Lembro-me como se fosse hoje. Deu-me uma festa na cara e com ternura disse: "Não chores, tu és uma artista". Comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. Ela tinha acrescentado o riso com aquele gesto. E tinha tornado tudo mais verdadeiro. Ser artista é rir e chorar ao mesmo tempo. Trabalhar em conjunto, é isto. Aquilo que não é isto, é uma miséria, no fundo nem tem conhaque, nem trabalho. Não tem nada.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O sorriso do Anjo de Reims


Francamente nunca te vi com um perfeccionismo absurdo. Parece que fazes as coisas já com uma imagem fixa na cabeça, com uma ideia que tentas alcançar e, em simultâneo, parece que a ideia se vai fazendo à medida que fazes as coisas. Se calhar é uma mistura. Uma ideia flutuante que procuras agarrar e que pode mudar de forma se a segurares.
Não convertes ninguém, nem procuras salvar ninguém. Tentas antes compreender, isso sim.  Só isso ocupa-te mais tempo do que pensas. Cheguei mesmo a pensar que essa era a tua forma de filosofia: compreender os outros. Mas o que verdadeiramente te anima não é isso, é a arte. Só a forma como te moves diz tudo. Um guerreiro elegante. Se soubessem com que olhos nos olhamos uns aos outros... Os nossos olhos são diferentes, mais profundos porque situamos o coração em qualquer parte do corpo como se este tivesse a capacidade de ser ubíquo e transmitisse informações de todas as formas possíveis. O meu sorriso não tem fim. Permanece inalterado pelos séculos como aquele sorriso dos anjos de Reims. O que vai segurando o mundo é esta vida interior. Sem ela o mundo é uma casca que se quebra com um sopro. Ecos e ecos na terra oca da verdade preenchendo o espaço, tornando-o seguro e inquebrável. Andam todos preocupados ora com a missão (os mais ambiciosos, ora com a função, os mais ambiciosos tecnocratas da vida) quando têm algo mesmo debaixo dos olhos e não vêem.  É um ponto pequenino, quase invisível mas que clama por nascer. Sob determinadas condições acaba mesmo por nascer, até para as pessoas que não vão conscientemente à procura dele. À mínima possibilidade, como as plantas, irrompe. É a vida interior. Querem acabar com isso, os desalmados. Alguns até conseguem ser eruditos desalmados, são só memória e factos como aquela História Moderna que inventaram, asséptica, a caminhar para a ausência de hermenêutica. Factos e datas sucessivos, secos, abruptos e sem movimento. Mas não conseguiram. A política tomou o lugar na interpretação dos factos, não deixa de ser também ela asséptica à sua maneira porque a política substitui a ideia pela ideologia. Torna-a comprida e arrastada no tempo e no espaço, como uma serpente sabida que acaba em 'logia", um "logos" perpétuo sem fim à vista, enfim, uma "serpentologia", por assim dizer, com tudo o que tem de indefinido e de tentação e tudo o que tem de definido na imagem e na certeza com que sibila aqui e ali as verdades que vai encontrando pelo caminho. A política é uma cascavel. E morde. A História torna-se sua filha rapidamente. Por isso é que até a memória se torna asséptica também, sem vida interior. Chegam até a confundir a vida interior com a política e, nesse caso, os desalmados esfregam as mãos com contentamento. Iludidos pensam que caçaram mais um nas suas malhas. É mais um que vai perder tempo ali, julgando-se herói ou sabendo-se um patife sem escrúpulos mascarado de herói, preso a essa imagem grega e sem a cobrança da juventude porque querem manter-se no poleiro o mais tempo possível ou usufruir do facto de ter estado nele o mais tempo possível também. Depois têm um olhar vazio, um coração negro, a inteligência mortiça com que debitam os comentários que fazem na comunicação social. Uns horrores de ver para quem sabe ver por dentro. Nem é necessária a visão de fantasmas. Eles são fantasmas errantes nos ecrãs. A alma é outra coisa. Viva, agitada, futura. Interessa-lhe sempre o futuro. A memória tem vantagens mas é muito melhor acompanhada desse futuro que vês na ideia que tentas apanhar quando fazes as coisas. A arte é outra coisa. E não é cópia do real. Para isso existem os espelhos e as câmaras. É captar o invisível. A ideia. A anima. O instante precioso e eterno. A salvação, se existir, é uma consequência, não um fim. Isso é para os ambiciosos, não para os artistas. Os ambiciosos querem dar um salto e ficar suspensos no paraíso de cabeça para baixo a deitar a língua de fora ao resto da humanidade e a dizer-lhe que conseguiram e os outros não. Os artistas querem lá saber disso para alguma coisa. Querem é as coisas feitas, o resto não é com eles nem para eles e, se for, é porque alguém lá em cima se lembrou deles e lhes resolveu oferecer uma flor. Os artistas não querem salvar a alma de ninguém, nem a sua. Querem salvar aquela matéria prima da fealdade, da falta de sonho, da falta de alma, da falta de espírito. Os outros são sempre novelos desmanchados e cheios de nós que se tentam compreender e que se conseguem compreender ou não. A matéria prima é que não pode esperar. Isso é outra coisa. Põe-se aos berros a pedir para ser transformada. Só quem tem vida interior a ouve. Só quem não está minimamente preocupado com os "pecados" que o hão-de salvar ou arremessá-lo para o inferno é que consegue ouvir a matéria-prima. Os pecados são para os santos, não são para os artistas. Só o tempo que se perde nisso enquanto a matéria chora e grita e estrabucha porque ninguém lhe liga nenhuma. O tempo que se perde nisso, perde-se em vida interior. Perde-se em vida. E perde-se vida. Por isso aprecio a forma como fazes as coisas. Parece que danças. As tuas pernas flectem-se, rodopiam, os teus braços ficam leves, o teu olhar fica fixo num ponto. E sorris. Sei que nunca te deste conta de que sorris. Mas sorris com à vontade de quem está numa festa. E estás numa festa. Num banquete. No centro dele. Em cima da mesa. E jorras como uma fonte de vinho e de fruta. E inebrias-me o olhar. E mantenho este sorriso parecido com aquele dos anjos de Reims. O eterno sorriso. O que compreende. O que ama. O que sabe. Como o teu quando fazes coisas bonitas, porque não queres saber das trevas para nada, apenas dessa luz que te assiste para que possas ver melhor o que fazes.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Experiência Pessoal - o "espicaçar"



  • A Providência, em conjunto com a opção, levou-me à casa dos horrores mais extraordinária que alguma vez vi. Pegaram em mim e viraram-me ao contrário, bateram-me e agitaram-me. Adorei. A diferença, entre esse tipo de tareias e as mentirosas e gratuitas está em duas coisas fundamentais: a Providência e a Aprendizagem. A Providência torna legítima a tareia, a Aprendizagem é a prova de que a tareia era legítima. Não foi a Providência que me encaminhou para um conjunto de rufias que fazem bullying com um ar superior mascarando as péssimas intenções que têm com as melhores intenções. Nunca tiveram legitimidade alguma para o que fizeram. A Providência encarregou-se, quase em simultâneo, de me mostrar isso. E se lhe estou grata? Oh, se estou. Para sempre.

A Árvore da Vida



Quando se vêem em apuros vão todos beber ao Guénon. Antes isso...

Bem vistas as coisas, uma banana vale 108 mil euros. E depois é comida. Era a ideia que valia esse preço. Que ideia? A ideia de se vender uma banana por esse preço e depois comê-la. E assim se atinge o manicómio facilmente.

Lembrei-me do livro "O Esoterismo de Fernando Pessoa" de Dalila Pereira da Costa.
Vivemos hoje num mundo, tal como o mundo estava no tempo do poeta, cheio de sombras e de trevas. Há o culto consciente delas de várias maneiras, psicológico, inconsciente, consciente, ritualizado até. Por vezes chega a ser uma prisão voluntária no tenebroso, no terrível, no deformado, todos aconchegados e mimados no íntimo dos seres por uma vida inteira. A diferença é que há hoje mais pessoas a ler e a escrever e a urgência de protagonismo conduz à divulgação acelerada, por todos os meios, dessa escuridão. Quando a luz é mal vista é mesmo uma opção voluntária no "y" já referido nas publicações anteriores.

Diz Dalila P. da Costa no livro supra mencionado, (quinta edição da Lello Editores):

"Entre as três vias, poética, iniciática e a contemplativa, não haverá oposição: elas serão caminhos diversos levando a um mesmo ponto central único: a mesma revelação comum estará no seu fim; e a mesma união.
Mas afigura-se que Fernando Pessoa realizou a primeira, teria atingido a revelação da última (embora fora de toda ou qualquer disciplina ou método; unicamente em raras experiências espontâneas), mas falhou na iniciática, onde a partir dum certo momento se deu como que uma paragem, uma estagnação e dissolução: de súbito ele viu-se num caminho ante o muro que o barrava. (Pág. 64)

(...)

A força de Fernando Pessoa como poeta, foi conhecer o seu dom, e levá-lo até às suas derradeiras possibilidades, em obediência e humildade". (Pág. 66)

E aqui está o suficiente para nós determos sobre a grande questão da missão (que é sempre pro bono) e a da Iniciação (que pode ser ou não a páginas tantas do caminho).

E esta questão é fundamental, nos dias de hoje, de dissolução Universal, época final deste ciclo. As sementes deixadas por Pessoa e outros que o antecederam relativamente ao mundo, serão sempre sementes, independentemente de serem alvo de Marketing, ou alvo de outros interesses que não os dos que profetizaram uma outra Idade. Essa questão não se coloca. A questão que se coloca é a da Iniciação como condição necessária para essa Nova Idade porque só ela poderá fazer a mutação entre as duas e conduzir ao Paraíso Terrestre (e não ao da infância de Pessoa).

Nesse sentido, há três opções (o Y de novo): ou se espalham sementes sem iniciação (uma espécie de cópia do que já se conhece de alguns autores), ou se pode optar pela Iniciação sem necessidade de deixar sementes porque estas não têm condições actualmente para frutificar, ou se pode optar pelas duas, a opção mais difícil e a mais eficaz.

A humildade e a obediência são fundamentais para se poder servir com um ou mais dons, mas não são nada fundamentais para a Iniciação cujo carácter é activo e não passivo (ler Guénon porque ele explica a diferença entre iniciação e misticismo). Um místico pode tornar-se Iniciado se encontrar o mapa que o faça sair do misticismo.

E pergunta Dalila P. Da Costa e bem:
"Perdeu-se ele no primeiro plano, o psíquico, antes de poder atingir a verdadeira meta - a libertação, a que se daria no plano seguinte, o espiritual? Perdeu-se ele aí, nessa sua alma desunida e ainda não suficientemente decantada, nessa sua "selva oscura" ("vou em mim como entre bosques"). E até que ponto teria ido o contacto que possuiria com uma organização iniciática verdadeira?"

Estas questões fazem todas sentido. O excesso de psiquismo pode transformar-se numa prisão de trevas... trevas que podem conduzir à loucura como o exemplo que dei da banana dispendiosa e de que o mundo está cada vez mais cheio.

Ainda assim, não deixou o poeta de cumprir a sua missão mesmo que o castigo tenha sido esse excesso de mundo psíquico que o poderá ter conduzido a uma estagnação. Parece que o poeta conseguiu antever a Nova Idade, mas não uma Nova Idade no seu próprio horizonte o que a torna numa espécie de virtualidade (para usar a expressão de Guénon) universal.

Um dia um alquimista disse-me que quando a mulher dele entrava irritada no laboratório, as reacções químicas da matéria em tratamento ficavam fora de controlo. A simples presença conduzia a isso tal era a subtileza desses processos. É por isso que é a Iniciação a base da transmutação. Quer do homem, quer do mundo.

As sementes, serão sempre potenciais plantas. São necessárias em absoluto. A árvore da vida, por seu lado, é a Presença do próprio Jardim.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Y de novo: resposta à resposta


Devo acrescentar que a bifurcação são as escolhas e que o terceiro trilho que fica para trás é a capacidade de olhar para o caminho percorrido com outros olhos, caso se escolha bem na bifurcação. Esse terceiro trilho que fica para trás é a capacidade de ver o passado com olhos novos e esse novo olhar indica que aquilo que dantes não fazia sentido se desvenda com um sentido simbólico. Evidentemente que existe o risco de se ficar estagnado nessa perspectiva nova. Fernando Pessoa, sentiu isso muito bem quando projectava o paraíso na sua infância, numa espécie de saudades (e não saudade como repetem os que leram alguma coisa) só que de um paraíso vivido na infância. Esse tipo de erro é muito comum e não tem nada de mal. Chamo-lhe erro porque pode conduzir a alguma estagnação. Frequentemente os poetas recordam a infância desse modo. É uma recordação, não é uma reminiscência (são coisas diferentes). Essa capacidade de ver o passado como um trilho já percorrido deve ser visto sempre em termos simbólicos e não com uma visão sentimentalista e lacrimejante. O pendor intelectual da obra de Fernando Pessoa é de tal maneira elevado que compensa em larga medida, essa tendência , no entanto, confundir infância com paraíso é um pouco abusivo para com o paraíso. A inquietude de Pessoa na demanda conduziu-o também à procura de sossego e a única lembrança que tinha dele era o da infância. A paz da sua infância, não a paz profunda que é outra coisa (desce do alto) e essa, sim, está ligada ao Paraíso. Um  "y" é um "y", não é um "v". 

sábado, 7 de dezembro de 2019

Y

O "y" para além de ser uma letra divina é também uma letra simbólica. O ramo da árvore que se subdivide. A centelha divina nos seres.

No filme "O piano", lindíssimo, esse "y" aparece no solo como trilho e é na escolha de um dos lados da divisão que está todo o desenrolar da história que se segue.

A aceitação de uma centelha divina nos seres fica ao critério de cada um. Uns vivem bem sem isso, outros vivem bem com isso. Na verdade isso não é importante e é muito importante. Ou antes, torna-se importante em certos solos que se bifurcam. Nessas alturas, o "Y" aparece incandescente dentro e fora de nós.

Há uns anos deu-se um desses "Y" à entrada de um Centro Comercial. Bizarro acontecimento que me fez, minutos mais tarde, tomar uma decisão, desta vez numa rotunda, numa circunferência.

A decisão tomada implicava ou dinheiro e liberdade convencional, ou uma autêntica incógnita. Foi um símbolo, um símbolo estranho, um objecto que serviu de símbolo, na altura, nomeadamente um chocolate que me fez decidir pela incógnita. Um verdadeiro salto no abismo.

Poderia ter ficado por aquilo que já conhecia e não escolher nada, poderia ter ficado com o dinheiro e a suposta liberdade ou poderia ficar com a incógnita (na verdade a letra "y" tem três trilhos se bem analisada... ) mas preferi a incógnita. No fundo preferi saber mais. E não foi uma má escolha. Quando nos resignamos a não saber mais, os caminhos prosseguem mas não são tão ricos. Uma das coisas que aprendi é a diferença que existe entre as pessoas interessantes e as interessadas. As interessantes, de alguma forma, já meteram na cabeça duas coisas: que já sabem bastante e que há coisas que nunca vão saber. As interessadas, por seu lado, são um pouco doidas porque não meteram ainda nada na cabeça: nem que já sabem umas coisas nem que há coisas que nunca vão saber. Não são pessoas interessantes, mas são pessoas extremamente vivas. Em todos os planos. Possuem uma centelha divina visível entre pares. Essa é uma diferença fundamental.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Cornucópia


Da história real não guardo nada, a não ser más recordações. Da história paralela, da qual poucos sabem, guardo uma cornucópia da abundância que não pára de jorrar. O grande erro dos movimentos pseudo-iniciáticos (os contra-iniciáticos são de uma outra natureza) é o de contarem exclusivamente com as suas fórmulas matemáticas (casa vez mais gastas). Esses movimentos alimentam uma relativa curiosidade meramente utilitária pelos mundos paralelos. Existem neles um certo "temor" por esses mundos e, em simultâneo, uma certa apropriação conveniente para que possam continuar a existir. Pode-se há dizer que o máximo que retiram deles é uma máscara para que possam continuar a sua peça de teatro. Para esses movimentos, o mundo é uma comédia/tragédia que se desenrola no tempo, num devir perpétuo no qual não só participam com consciência dele como também procuram cada vez mais adesões a esse modo de vida. Evidentemente que a natureza, o "eterno feminino", como lhe chamam, é aquilo que de mais elevado concebem e o tempo de duração é impreciso e sem desfecho. Se é retirado um véu, um outro aparece no seu lugar. Não é o "lugar dos possíveis" como o é o lugar do Verbo. É, sobretudo, o lugar das imagens sucedâneas sem a luz, a força e a vibração do Verbo. Os discursos provindos desses movimentos são normalmente parcos em ideias e ricos em imagens. Existe, porém, uma possibilidade, muito mais rara, da entrada nesse "lugar dos possíveis" que não nega as imagens mas as enriquece com o pensamento quando é caso disso. Nesse lugar, a palavra torna-se num gesto. Não teatral, mas total. O teatro implica sempre separação. O rito implica união. É o teatro que tem origem no rito e não o inverso. Parte da incrível história paralela que sucedeu comigo foi a aprendizagem de saber fazer essa distinção entre rito e teatro que outrora foram apenas um. A partir daí, quando se retira o véu, retira-se, de facto e não há retorno. Quando há, é voluntário, por uma razão ou por outra. No entanto, a forma como se retorna, se se retorna, é diferente. O teatro parece um espaço oco preenchido por novelos de lã que foram desfeitos e se encontram emaranhados. A ideia do cisne que fica deslizando calmamente é uma fase transitória. Na verdade, não há que ser cisne para sempre porque até ele, em certa medida, fica sujeito aos ciclos que ele mesmo produz: as elipses que a sua passagem provoca na água...resultado da abundância.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

A ilha


Não há texto nosso que não quebre as regras de alguém. Não há respiração que não largue dióxido de carbono. Não há parte que não atinja o todo. Exótica numa escola normal e absolutamente normal na António Arroio. De menos num lado, demais noutro. O dia e a noite, somos sempre pelo dia e pela noite. O meu primeiro amor quebrou as leis, deixou de ser mentira e tornou-se a verdade incómoda para todos. A subversão não é regra. É natural. Na natureza há sempre algo que faz dar a volta e leva ao nascimento da espiral. Existir já é subverter a morte. Rir no meio de um ritual sério é quebrá-lo, chorar numa comédia é desfazê-la, obedecer e escrever é contra a liberdade, escrever livremente é contra nós, ser contra nós é ser a favor do mundo, ser contra o mundo é estar a favor do céu. O destino maior olha-nos face a face e ri-se. Ir contra as regras é uma regra. A vanguarda morre no momento em que nasce. A repetição é anti-natura. A natureza diz sempre o mesmo. Aquilo que somos é uma textura. Tecidos pesados, cortinas de veludo. Cetim se o céu for azul escuro, sedas na manhã de um outro mundo. O pensamento burguês é linear. Faz as regras e desfá-las. Contente fica com os segredos que tece. "Tenho um segredo para fazer estremecer cada velho na família", diz o burguês. Cada velho na família tem um segredo para fazer estremecer os filhos. A papa burguesa nunca deixa de ser papa. Cerelác. O espelho dos seres. A morte confirmada no tédio da transgressão. A criatividade é outra coisa, meu amor. Sem lei, nem roque, é a lei e o rey. Não quer saber nem dela porque é tudo. Quando chegares à sua terra telefona. Apita. Dá sinal. E tenta apanhá-la na ilha dos Amores.

Sábios e heróis


Os americanos gostam muito de fazer filmes-catástrofe para que, no fim, os heróis salvem o mundo. Isto da Greta é a mesma coisa. Um semi-messianismo ambientalista. Nos filmes-catástrofe, o herói salva o planeta para que o modo de vida e as mentalidades continuem intactas. Faz sentido. São filmes defensivos. A Greta, pensa que está num desses filmes, mas não está. Porque uma coisa é salvar o planeta para que ele continue exactamente na mesma, outra é salvar o planeta de todos os seres humanos para que ele passe a ser outra coisa. A par com as alterações climáticas normais que o planeta vai tendo (como sempre teve), há aquilo a que de modo genérico se pode chamar de lixo. As duas coisas juntas são complicadas e podem ter péssimos resultados. Por detrás da Greta há também o mito da juventude e da adolescência, coisa muito americana também. É nos jovens que está a salvação. Lembro que os hippies também quiseram mudar o mundo e parece-me que o fizeram por apenas alguns anos e apenas para alguns. Quando vejo estes adolescentes muito empenhados desconfio que possa ser sol de pouca dura, como aliás é a própria juventude. Num abrir e fechar de olhos, casam, têm filhos e estão numa loja de telemóveis cheia de lítio a comprar um deles para o filho ou filha, porque é preciso "venerar" as crianças e os adolescentes. Mudar mentalidades e a sua mudança não são a mesma coisa que enviar um míssil em direcção a um asteróide para que este não colida com a Terra. Por vezes, nem as catástrofes naturais mudam definitivamente as mentalidades. Da Atlântida para cá o que houve foi a degeneração progressiva até à loucura de colocar líderes no poder cujo comportamento é infantil e, por vezes, abaixo de infantil (também houve reis assim mas não eram colocados lá por via da democracia e do povo...). As mentalidades mudam-se pelo Espírito, ou antes, é o Espírito que as muda. O Espírito nem é a moral nem a degeneração da moral e pelos vistos está cada vez mais distante. O mundo está cheio de "heróis", sobretudo novos, que morrem jovens (somos muito gregos...), mas está parco em sábios ou em sabedoria, daquela muito velha, que nunca morre completamente, apenas se ausenta quando a sua voz não se faz ouvir. E é disso que francamente necessitamos. Os jovens, podem dizer o que quiserem (são livres), os sábios não funcionam assim: dizem aquilo que faz falta dizer e guardam silêncio quando este faz falta também. O sábio tem outro tipo de liberdade, aquela que também pode conter o silêncio. É sabido que a Sabedoria está ligada ao Espírito. Será exclusivamente por aí que se poderá ir limpando o planeta, primeiro das mentalidades e, por acréscimo, do lixo que é para não piorar as alterações climáticas que estão sempre a acontecer por via da natureza. Isto se os sábios quiserem falar, o que não devem querer fazer por já terem percebido que em fase descendente, o silêncio é de ouro ou ainda acabam crucificados em público. Sempre que um sábio fala, há jovens que se irritam, então agora ainda mais.
A sabedoria leva tempo. A juventude ainda não passou pelo tempo. É apenas reactiva, poucos jovens são intuitivos, e só muito de vez em quando um deles demonstra capacidades para, um dia, vir a ser sábio. E não é com Asperger que lá chegamos. Um dos sintomas da síndrome de Asperger é a incapacidade ou a muita dificuldade de ter um pensamento simbólico. Isto diz tudo. 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O Pai Natal

Chatice! Bateram-me. E nem sei porque foi!!!
Esta é a fronteira, mas a fronteira separa dois tempos. O antes e o depois. Ora se antes já me batiam, durante o "batimento", o mesmo continuou e o depois foi a mesma coisa, é fácil entender que não há, nem houve fronteira alguma. O que pode haver é um olhar mais agudo da realidade, apenas isso. Isto da tareia não é como o beijinhos, uns mais doces, outros menos doces, a tareia é sempre tareia, seja qual for a forma que tome.
Aquilo que não se sabe é duma história paralela a tudo isto. E essa, é de outro mundo. Definitivamente, não é deste.
Tenho pena é dos que levam tareia toda a vida e não têm uma história do outro mundo para contar. São esses que me partem o coração e me dão a verdadeira tareia. São esses que me pedem a verdadeira ajuda mesmo que não saibam que a estão a pedir. Quanto aos que dão tareia a torto e a direito, mesmo com as "melhores" intenções, esses, nunca pedem ajuda. Pedem qualquer coisinha, mas ajuda não. É porque há dois tipos de bullying, o normal e mau e o outro que não lembra nem ao diabo: o pseudo-iniciático. Só me posso rir na cara deles antes de os mandar para o inferno donde nunca saíram, nem sairão enquanto não caírem em si, coisa que é tão rara como um encontro com o outro mundo... E dou por terminada a sessão.

Falando de coisas que valem a pena, a integridade é o maracujá em cima do bolo. Para não dizer Marajá. Dentro do Marajá está um coração de ouro. E muitas outras coisas. Isto de "ir à Índia", não tem o mesmo significado que lhe dava Fernando Pessoa. É quase como ir à Índia sem sair do lugar nem fazer gesto algum. É igual à integridade.

Tive uma professora primária com umas grandes unhas e que dizia piadas às quais não achava graça. Um dia fui para a rua por negar que tinha uma pastilha elástica na boca quando a tinha, de facto. Ela teve razão em mandar-me para a rua, mas ela não sabe porque é que neguei. Por desafio. Antes dessa cena, fiz um pai Natal com lápis de cor em cima de um papel manteiga. Era um pai Natal gordo, colorido, risonho. Ela gostou tanto que foi buscar um papel enorme muito dourado e muito caro (fez questão de me dizer), que se desenhava calcando uma bic e não se podia apagar. Pediu-me para fazer outro igual. Saiu-me um pai Natal triste, amargurado e extremamente magro. Senti lá dentro a fúria dela. Nesse momento percebi que ela não entendia nada de crianças e pior, de arte. A minha tendência floral já me dizia lá dentro, por gestos, que não havia um arranjo de flores igual a outro. Que nada se repetia na natureza (até os ciclos são espiralados, o que faz toda a diferença). Tinha sido a gota de água. Perdi o pouco respeito que tinha por ela porque ela não tinha respeitado a condição da infância e a condição da arte. Aquela mulher não era boa pessoa. E não era, de facto. Soube-o muito mais tarde.  A razão de me ter posto na rua era dela, a razão do coração, era minha.

domingo, 1 de dezembro de 2019

O dinossauro que ri


O que viste que os outros não viram?
Ainda vos abraço sempre.
Não voltarás a esquecer-te da origem, das terras, dos pomares, do animais, dos lagos com peixes e de tudo o que viste sem que se dessem conta do que vias.
Havia tanto para dizer e tão pouco perceberiam do que haveria para dizer.


Em teoria, este país é maravilhoso e etc e tal e tal e tal e tal...  como disseram os filósofos. Mas há mais, muito mais do que esse etc e tal e esse lado visível. Tem cavidades. Hoje soube que um dinossauro que esteve guardado na Amadora durante 60 anos é o Estegossauro mais completo da Europa. E disseram, sobre ele, que gostava de viver junto do mar. Completos, antigos e marítimos, é esse o muito mais que há em Portugal para além da filosofia e do etc e tal. Se se souber o que é ser-se completo, o que é difícil de saber, antigo, o que também o é, e marítimo, coisa muito complexa (nada é mais complexo do que o mar), então começamos a entrar nessas cavidades que compõem Portugal. A condição de entrada é irmos sendo completos, antigos e marítimos. Mas há coisas que não podem serem ditas em voz alta porque os sabichões escarnecem e gozam e, pior, destroem a mensagem. Os invejosos e os covardes dão cabo do país e de tudo o que verdadeiramente seja dito sobre a verdade dele e muitos deles vêm logo com aquela conversa sobre o facto da verdade não existir ou sobre o facto da verdade lhes pertencer, o que é o mesmo.  Se for filosofia ainda toleram (os filósofos portugueses são considerados pelas elites como um bando de gente doida que, às vezes, muito de vez em quando, dá jeito que sejam citados em festas e "eventos"), agora quem fala dessas cavidades onde as origens estão incrustadas tem logo um exército de incompetentes de espada triste erguida a defender o pensamento e o modo de ser de uma qualquer globalização do momento. Um país que se vende por um saco de dinheiro (não é em vão que esses tostões sejam apresentados na bandeira, como aviso, ainda que inconsciente). Por cada dez seres que possam existir e que saibam quem são, há dez milhões (aproximadamente a população de Portugal) que não sabem quem são; por cada dez pessoas que sejam completas, antigas e marítimas, há dez milhões que são incompletas, modernas e exclusivamente terrestres ou deste mundo. De maneira que o batalhão que se ergue é imenso e defendem coisa nenhuma. Hoje, dia 1 de Dezembro, andam muitos a comemorar a Independência. Esquecem-se, evidentemente, de defender os portugueses dos próprios portugueses ou daqueles que se dizem portugueses não sendo coisa nenhuma. Até um dinossauro cadavérico faz melhor o serviço.

Mulher


https://sicnoticias.pt/programas/original-e-a-cultura/2019-11-30-Original-e-a-Cultura---A-Criacao-tem-genero-

Nem sempre rigorosos nas observações, ver esta edição não é uma questão de feminismo, é uma questão de pensamento e de atitudes. Estes debates são bons e necessários e dão pano para mangas. Não se trata da palavra "feminismo" que francamente parece ser uma resposta "machista" ao machismo. Mas continua a existir, com maior ou menor subtileza, com maior ou menor brutalidade, o desconforto perante a presença das mulheres.  Entre eles e entre elas. O que é uma pena, um sintoma de falta de inteligência e de sensibilidade lamentáveis.

sábado, 30 de novembro de 2019

Catarina, a Grande

O grau de iliteracia dos meus textos é assustador. Depois de ter escrito o texto "A Grandeza" há algumas horas, recebi não sei quantas chamadas de Alexandres que me quiseram informar sobre a sua opinião acerca de si próprios. Todos eles me disseram serem grandes. Ora o texto, acaba a dizer que "o nome não interessa para nada", e eis que os incompetentes da leitura, se acercam do texto, fazem-lhe o cerco e mudam-lhe o sentido. A inversão é típica do satanismo... Ora se o nome não interessa para nada, mas se quem lê o que quer e não o que lá está, resolve aproveitar-se disso, isso não altera o texto, altera é a pessoa que o lê: de um potencial bom leitor passa a um completo péssimo leitor. Devo acrescentar que não vale a pena virem com aquela história hermética daquilo que diz que "o que está em cima é como o que está em baixo" mas ao contrário. É que se for assim todo o satanismo é legítimo e, se calhar, é isso mesmo que querem. Para a próxima talvez coloque "Catarina, a Grande", e como se trata de um nome de mulher, talvez elas não me telefonem a dar a opinião sobre si próprias, até porque, frequentemente, e infelizmente para muitos machos que pensam ser os melhores do mundo, elas demonstram mais inteligência do que eles... Disse "frequentemente", não disse "sempre" meus amigos com défice de literacia. Só escrevo para pessoas inteligentes. Os outros não percebem nada.

30 de Novembro


Olá, meu amor. Mais um ano passou desde que partiste. Já tinha preparado o meu nascimento só para te poder ler. Desencontrámo-nos no tempo mas encontrámo-nos nas palavras. O mundo continua no seu percurso de fim de ciclo. Tenho a certeza que se escrevesses agora ninguém te compreenderia na mesma e terias de repetir todos os teus heterónimos e arranjarias uns novos numa última tentativa para falares a partir do coração do mundo. Meu amor, as últimas novidades que tenho para ti são as do Espírito Santo. Disse-me ao ouvido (ele também fala ao ouvido e não à orelha) que continua a não se deixar enganar. De maneira que, por aqui, nesta pátria que é a língua portuguesa, Ele continua atento e soprando aqui e ali. Andamos  todos aqui a fazer por viver. Os que não andam, andam a fazer por sobreviver e os restantes andam a fazer por viver interiormente. São poucos. No fundo são os mesmo de sempre neste fim de ciclo. Tu conhece-los bem, também estiveram contigo e acompanharam-te sempre. De modo que, continuo a amar-te muito e a encontrar-me, sempre que posso, com as tuas palavras para que possa encontrar-te a ti, poeta-estrela.
Um beijo grande.

Cynthia

A Grandeza


Alexandre, o pequeno, nunca foi o Grande. Também tinha, como o Grande, um lado feminino, de tecedeira. Alexandre, o pequeno, tecia com fios que encontrava pelo caminho, opacos e tristes, restos de palavras apanhadas em redes de borboletas. E o tecido, tecido por ele, era uma serapilheira gasta, baça que caía tristemente sobre o branco sujo do papel amarrotado. Alexandre, o Grande, era aquela tecedeira que não negava a noite e o dia e que, a qualquer hora, cruzava os fios nocturnos que apanhava das águas onde se reflectia a luz da lua e os raios de sol, formando com eles bordados, sem que houvesse qualquer diferença, entre eles e os do céu. O tecido luxuoso era depois transportado em caravanas e ia vestir os reis e as rainhas do outro lado do mundo e que, desse modo, iluminavam os seus reinos. 
A matéria-prima, que um e outro conseguiam apanhar era aquilo que um e o outro eram verdadeiramente. Como se depreende daqui, o nome não interessa para nada. Apenas a Grandeza.

A paisagem


Há mais um desiludido com a sala de baile. Esse, tinha dançado até que os pés lhe sangrassem como o Fred Astaire. Tinha até dançado com as três Marias, as rainhas do baile, mas agora, está no avarandado que dá sobre o crepúsculo ou o amanhecer, não sabemos bem, que é para onde vão aqueles que precisam de respirar ar fresco. Está a dizer que os assentos das cadeiras não são grande coisa e que prefere estar debruçado no parapeito, entre colunas, a fumar o seu cigarro. Quando se está no avarandado com aquela luz, as regras deixam de fazer sentido, e ali, pode estar sossegado a falar e a pensar sem ter que andar aos saltos. Ali, onde vão parar os desiludidos é um lugar especial. Outra perspectiva, outra visão das coisas. Neste momento fala da música, mal escolhida e mal tocada. E das máscaras. Era suposto ser um baile de máscaras, mas, a pouco e pouco elas foram caindo até que a zebra com quem estava a dançar se tinha revelado um cão de guarda, o elefante, seu amigo, um galo idiota, a avestruz da Maria, um aranhiço, engraçado, mas incapaz de uma pirueta verdadeira. Não deixara de ser um zoo, mas a graça que as máscaras tinham, tinha desaparecido e agora havia penas por todo o lado, poeira, os peixes tentavam comer-se uns aos outros e perseguiam-se com oratórias. Não deixara de ser uma fábula, mas extremamente cansativa. A dança nem sequer chegava a ter a dignidade da ginástica rítmica. Estava ali, com o seu copo de vinho, a única coisa que tinha trazido lá de dentro, e contemplava aquela cor no horizonte que permitia que o recorte das árvores contra o céu parecesse verde muito escuro enquanto as primeiras estrelas apareciam a cintilar. Lá em baixo, um lago com cisnes espelhava a alvura tímida da sua penugem. Tudo lhe pareceu mais nítido. Tudo ficou mais nítido enquanto os minutos avançavam. A noite, surgiu-lhe com constelações infinitas sobrepostas, o manto da cúpula do céu desvendava a natureza do seu disfarce e onde havia trevas passou a existir luz. Um dos amigos disse-lhe então:
"Então já descobriste este lugar? Não esperava isso de ti... Sabes que podes entrar e sair quando quiseres."
E sorriu para longe em direcção ao sol que já se adivinhava.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Há coisas deliciosas


Hoje em conversa com um amigo veio à baila o tema da juventude e dois tópicos associados a ela: a internet, com redes sociais incluídas e o desinteresse da mesma por congressos, palestras com temas de rondavam as áreas que estudam. Já sabia desse desinteresse geral em ir a "eventos" onde as pessoas vivas e ao vivo aparecem para falar e dar parte do seu tempo e também já sabia que se diz nos estudos mais avançados ligados à sociologia que a virtualidade é encarada como realidade, porque tem efeitos na realidade. A páginas tantas, lembro-me ter dito que a "virtualidade" se podia desligar (evidentemente que a realidade vivida realmente também se pode desligar quando as pessoas morrem, mas isso é um caso extremo) e de o meu interlocutor, envolvido nessas leituras, ter ficado a pensar no assunto. Minutos antes, com outro interlocutor, tinha vindo à conversa o facto da juventude não ler por estar sempre nas redes sociais e nos canais disto e daquilo da internet. Evidentemente que não chegámos a conclusão nem a solução nenhuma, até porque não existe. Aquilo que existe são consequências desses factos. As próximas gerações estarão cá para falar sobre isso. Eu, felizmente, não, nem tenho soluções ou indicações a dar. No meu egoísmo profundo, que tem toda a razão de ser depois de anos a falar e a escrever para coisa nenhuma, posso apenas dizer que não sabem, estes jovens rápidos digitais, o que perdem: mundos riquíssimos internos que podiam ser seus e outros ainda que podiam também conhecer através dos outros. E perdem ainda mais: a natureza, o pensamento, a meditação, a beleza, a harmonia, as essências, o dom da palavra... E nada se pode fazer. Provavelmente uma minoria, muito minoria mesmo, numa geração futura, escapar-se-á destes modos de estar "à beira do abismo ligado à corrente eléctrica" será ela, provavelmente, que terá de escrever e falar das consequências desse modo de vida e não gostaria de estar no lugar deles por ser extremamente cansativo explicar o óbvio a pessoas que nem o óbvio apreendem. Ao contrário do que possa parecer, não me sinto "velha" por não acompanhar tudo o que aparece de novo na tecnologia. Qualquer pessoa normal, às tantas, e com esta aceleração, troca o passo, tropeça e perde o ritmo, e isso vai acontecer a qualquer um destes jovens que são tão promissores por tanto estarem ligados à corrente. Um pouco como os nossos pais que já não entenderam nada de computadores e nunca tiveram de cartões de multibanco. Também a estes jovens virá o tempo em que o telemóvel de última geração que agora possuem seja uma recordação longínqua sem que entendam o telemóvel da sua velhice ou o chip que alguns jovens trazem incorporados numa sobrancelha onde dantes se colocavam um piercing. Não estou preocupada com isso, nem com as consequências disso. A humanidade é maior e vacinada e lá sabe o que faz (ou não sabe, como aconteceu com humanidades antecedentes). Se andasse aqui para salvar almas ou pessoas ou partes de pessoas ter-me-iam sido dados dons nesse sentido, coisa que não aconteceu. A única coisa que posso fazer é dizer: "Que pena, não sabem o que perdem". Mas o mesmo já digo dos meus vizinhos de baixo que não pegam num livro (dizem que os livros só trazem pó) nem têm um pensamento que vá mais longe do que a novela ou o futebol, o que é uma pena. O século XX apregoou a educação para todos. É verdade que os meus vizinhos de baixo sabem ler e escrever ao contrário dos seus pais, mas de pouco ou nada lhes serviu a não ser para irem às compras, lerem o rótulos ou deitarem contas à vida. É verdade que esta juventude tem a informação que quer e lhe apetece se tocar nos aparelhos. De resto, falta-lhes tudo. Quando os males sociais são endógenos não há artifício que os valham. As grandes questões humanas, por seu lado, continuam vivas e à procura de resposta. O que é uma esperança. E uma maçada. E dão muito trabalho. Não são fáceis. Mas são deliciosas.

O principal



O feto volta-se para a luz
Nada na natureza canta igual
Se pela estrada encontras o mesmo
Se te voltas ou não, é o principal.

(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

O lamaçal


A diferença entre a Iniciação e o bullying, é que na primeira, aprende-se, no segundo não. O segundo é, aliás uma palavra inglesa, denota uma certa forma de estar no mundo. Denota a contra-iniciação. Passando por essas duas acções facilmente se vê a diferença. Da primeira sai-se mais inteiro, da segunda sai-se todo partido, até fisicamente, se for caso disso. A reminiscência platónica é muito mais do que a lembrança do mundo das essências. É uma grande mistura entre aquilo que já se sabe de alguma forma,  aquilo que se desenvolveu ou expandiu dentro de nós e aquilo que no imediato se apreende, se conhece e se expande. É um conjunto de três tempos, o eterno, o passado e o presente, que juntos cinzelam o futuro. A providência é a chave desse movimento.
Os intelectuais que não conhecem a natureza dos textos são aqueles que mais tarde se filiam em partidos e religiões ou aqueles que partem para o texto com essas filiações já embutidas. A natureza dos textos está-lhes vedada. Numa ordem tradicional estariam sempre a varrer o chão e a fazer contas à maior ou menor distância que estavam os seus gestos em relação às ideias pré-concebidas. A criação está-lhes vedada.  A iniciação também. O lamaçal está instalado e cada um varre a lama para cima do próximo que, por sua vez, faz o mesmo aos próximos. Eis o panorama. As vistas panorâmicas têm esse efeito de se poder ver o detalhe mimético das acções.
Nem a erudição nem a ilusão de poder são meios para o que quer que seja. Apenas a visão que atravessa as fronteiras do corpo consegue fazer exaltar o perfume da verdade. A humildade que apregoam é o embuste com que se disfarçam estes varredores de lama. Os que se dizem humildes ou amar a humildade, nunca o são verdadeiramente, e os que sabem, de facto, quem são só são humildes relativamente aquilo que são e se forem mais do que isso, terão uma relação de equivalência com aquilo que são.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

As pinturas


Este e outro estão há alguns meses no escritório de uma amiga. Por via do meu irmão soube hoje que as pessoas ficam espantadas e até gostam quando os descobrem. Não é mau.
Depois de ter sido desconsiderada, não é mau saber que, algures, em Carcavelos alguém vai gostando. Não tenho dever nenhum de pintar, nem de escrever. Pinto por necessidade. A mesma com que decoro uma casa. Escrevo porque causa daquilo a que René Guénon chama (pelo menos foi pela pena dele que li), o "lugar dos possíveis" que é o lugar da palavra e do verbo que fica à superfície das águas... Não tenho o dever moral de o fazer porque a moralidade é apanágio das religiões. Não estou ligada a nenhuma instituição religiosa, e por isso, a nenhum dogma. O dogma sou eu e altero-o se me apetecer e não porque há sacerdotes que o digam para fazer. A sacerdotisa sou eu.
Assim, depois de anos a tentar encontrar "espaços para expôr" e a pouco ou nada conseguir  (para além da trabalheira que é andar com os quadros de um lado para o outro, sozinha num Smart - se quisesse ir para feiras, escolheria coisas mais facilmente transportáveis) e de não ver grande interesse (nem ajuda) das pessoas para o fazer, decidi que a "iniciativa" ficaria por conta dos outros. Limito-me a pintar quando me apetece, se me apetece, sem qualquer obrigação para com ninguém. Os outros é que passaram, sob o meu ponto de vista a ter a obrigação de gostarem do que faço, de gostarem e de entenderem, se não o fazem, não sou eu que os vou julgar até porque tenho mais do que fazer. Uma das coisas que tenho de fazer é ir estudando. Não para ser professora de ninguém (nem  temos vocação para tal) mas para que vá tentando entender melhor o que me rodeia e o que está dentro de mim. Também isso não é dever para com ninguém. E escrever, coisa que só me trouxe dissabores com as pessoas, muitas delas que julgava serem minhas amigas não o sendo, é fundantalmente um exercício da Liberdade. Ora sendo uma prática de Liberdade não pode, naturalmente, ser um dever para com ninguém. Os deveres são outras coisas nas quais podemos ou não colocar o coração e não é certo que o façamos sempre - ninguém gosta de pagar impostos e se gostam devem ter em conta os ladrões que ficam com parte deles. O dever, é sempre ambíguo e pantanoso demais para a Verdade Interior.
Sendo o "lugar dos possíveis", um lugar especial (primeiro é preciso "cair nele", é o lugar onde tudo pode acontecer - e daí ter entrado a cisão fraterna em jogo como algo que possivelmente seria a consequência da escrita) é também o lugar onde a possibilidade de escrever o que os humanos querem que escreva é apenas uma entre muitas. Para o fazer, teria que sentir admiração. Admiração pelas ideias dos outros. Infelizmente tenho admiração pelas ideias dos que já partiram o que torna essa possibilidade (que é uma entre muitas) num diálogo com defundos. Daí o ensaio sobre o que os outros escreveram como uma das formas de expressão. De resto, escrevo o que me apetece, quando me apetece. Nunca pensei que o lugar da pintura partilhasse tantas semelhanças com o da escrita e isto do "apetecer" acabou por ser uma libertação do sentido de "dever" que durante anos tive e me levava à constante auto-culpabilização por não me fazer entender nem na pintura, nem na escrita. A natureza do "dever", pesada e demasiado apegada a dogmas que me eram estranhos na alma, teve o condão de me tornar uma pessoa frequentemente triste. E até essa tristeza acabava por me surgir em segunda mão, não era minha de origem. A minha origem era e é a da alegria. Foi no dia em que, depois de muito treino, me libertei do dever que recuperei a alegria. Treinei com o vazio do pensamento. Durante alguns anos, ia dar uma volta de uma hora ou mais todos os dias. Durante esse tempo não pensava. Julgava que não era capaz de não pensar, mas a pouco e pouco, fui ganhando essa habilidade a que chamei de "tela em branco" e vi que era possível não pensar (pensava que era uma coisa só possível de fazer pelo sexo masculino mas vi que eu também era capaz) e isso ajudou-me a libertar-me da ideia de "dever", do sentimento de culpa posterior e da malfadada tristeza que lhe seguia. Quando me trazem numa mão um presente, qualquer que seja, e na outra o dogma em contraponto, sinto-me a anos luz dessas pessoas. Normalmente fico com o presente e, quanto ao dogma, devolvo-o com um sorriso. Uma simples frase que faça recair sobre essa pessoa um qualquer dever, mesmo que abstracto. Qualquer coisa que a faça sentir o peso do que "oferece", o peso do seu fanatismo, o peso de carregar dentro de si um templo que não é o seu mas sim o de alguém que um dia lhe fez essa oferta. É uma boa forma de nos livramos dos idiotas.

domingo, 24 de novembro de 2019

Quem me manda?



Com a sabedoria com que Dalila Pereira da Costa observava o mundo, disse-me um dia, depois de observar as minhas pinturas expostas numa livraria do Porto: "A Cynthia é indiana". Ri-me, achei graça. Mas devia ter tomado mais atenção às palavras dessa grande senhora. Na verdade, a sensibilidade ocidental não percebe nada do que pinto. Até mesmo os ocidentais orientalizados não compreendem. Já mostrei pinturas a chineses que entenderam logo. O meu público nunca será este dos ocidentes. A não ser que sejam pessoas que, pela experiência ou pelo nascimento, saibam do movimento que há no extático e do repouso que há no movimento. Essência do ritual. E saibam, sobretudo, da luz. Interior, claro. Há mais de um ano que não pego num pincel. Dediquei-me ao estudo. As pinturas não servem a ninguém (a não ser a Deus) e o estudo, ao menos, serve para mim, pensei. Sempre alternei palavras com pinturas. Também me canso da incompreensão da pintura e do consequente isolamento. Os textos a bem dizer também não têm respostas, mesmo sendo todos perguntas, a não ser do cosmos que se farta de comentar. Nem preciso da interpretação de ninguém, mal escrevo, aparece logo uma enxurrada de coincidências às quais não ligo muito. Hoje vi uma reportagem sobre o Conservatório das Artes de Loures na SIC. Até chorei. Isto de retirar as crianças de contextos problemáticos e dos atirar à Arte que os devora e os transforma é das coisas mais bonitas que há. Sinto que quem faz isso merecia várias medalhas ao contrário de muitos medalhados. Às vezes gostava de ser assim, de levar um bando de crianças pela mão e de as fazer voar. Mas sei que não sou capaz. A única coisa que sou capaz é de ser uma pessoa normal sem grandeza suficientemente externa para mudar o mundo. Nunca mudarei o mundo. Para o mudar é preciso estar dentro dele. Estou sempre na periferia a pensar que o mundo é o mar com muitos peixes que se cruzam no passeios dos destinos. Fico sentada na periferia, com um olho nas estrelas e o outro no mar (um pé numa galera e o outro no fundo do mar - lembrei-me de Jorge Palma), mas não é bem nem uma galera nem é bem o fundo do mar. É mesmo o mar todo e todas as estrelas. Suspensa, entre a escrita, o estudo e a pintura. Os gestos são tão pequenos que só Deus vê. E alguns anjos se tropeçarem neles. Quem me manda ser indiana aqui?

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O pão que o diabo amassou



Os textos incomodativos procuram colocar o dedo da falha sísmica antropológica sobre a qual assenta a nossa civilização. Observar que o mecanismo de ascensão social se efectua, cada vez mais, a partir da projecção de uma imagem e sua respectiva publicidade tendente à propaganda, é tão simples como uma criança constatar que a água está quente ou fria. Dizer que essa é uma pseudo liberdade quando se projectam imagens, independentemente da qualidade que tenham, é constatar a ausência de critérios sendo o único a projecção dessa mesma imagem. No fundo é o que se passa também com as chamadas "artes plásticas". Não é o objecto que tem destaque, é o espaço que dá destaque ao objecto independentemente daquilo que o objecto for. Esta regra muito simples da arte contemporânea, a da valorização da localização em detrimento da qualidade do objecto tem o seu início e o seu fim no próprio ser humano. Um rei por entre os mendigos, é um mendigo, um mendigo por entre os reis, é um rei. É o contexto que acaba por mascarar o ser. O espaço já não é um "ideal" mas o próprio objecto em si. O ser dilui-se no objecto que é o espaço. O ser desaparece, resta o espaço. A desertificação e a tendência para a desertificação é apenas um reflexo da auto-destruição dos seres. A identidade das plantas dá lugar à identidade dos minérios. As areias, as rochas não são mais o lugar das plantas, o seu habitat. As plantas são a nossa origem humana. A árvore é a da vida e a da ciência. E a árvore é o nosso alimento. A árvore é também o fruto. De facto, um homem sem pão não é livre. E não é livre aquele que nega a inteligência, a sabedoria e o céu. À sua volta, o deserto sem seres. O lugar lúgubre das tentações. A primeira das quais e a última também, a da ignorância.