quarta-feira, 26 de junho de 2019

O argumento

(Foto de Cynthia)


Os intervenientes nesta sessão dedicada à origem da palavra na poesia, façam o favor de se levantar e de se apresentar.
- Muito boa noite, chamo-me origem divina.
- Muito boa noite, chamo-me origem biológica.
- Muito boa noite, o meu nome é "à volta da fogueira".
- Muito boa noite, o meu nome é impronunciável por ser extraterrestre.

Feitas as apresentações, tem a início a sessão com a moderação a cargo da senhora dona poesia. Não sei se é doutora... fez o doutoramento?
- Muito obrigada pela pergunta mas, de facto, não fiz doutoramento algum, nunca me aceitaram na academia por incapacidade de argumentar.

Muito bem, damos então início à sessão.

A poesia levantou-se e começou a dançar uma dança exótica. Parou subitamente.
Começou por se pronunciar o senhor origem divina.

- Perante tais gestos, sobretudo quando coloca as mãos em posição de oração ou de apelo, com os braços em "v" e as palmas das mãos viradas para cima, parece-me ser evidente que a origem das palavras que a compõe é divina sendo claro o seu desejo de retornar a essa origem perfeita.

- Lamento mas discordo, -- disse o senhor origem biológica -- parece-me que as palavras que a compõem têm origem biológica cuja estrutura é composta por vivências, memórias e uma nítida inserção disso no código de ADN. Por acaso não repararam, a determinada altura, nas espirais que a dança da poesia fez em torno do eixo principal, creio que o tema era o amor, (biologicamente isso tem pouca importância) evidenciando ser sua origem, sem qualquer dúvida, biológica. Onde é que iria sequer buscar as palavras se assim não fosse? O ADN é um reservatório de memória, de malhas tecidas ao longo das gerações e vivências.

-- Sim, Sim, fala muito bem senhor origem biológica -- disse o "senhor à volta da fogueira" -- mas na verdade, não há biologia sem corpo. Onde é que coloca o ADN? É no corpo. Foi à volta da fogueira, quando o apetite por carne caçada tinha já sido saciado que as palavras da poesia nasceram. Que fazem os homens que não falam ainda? Emitem sons, dançam com tambores, grunhem e a pouco e pouco vão surgindo sons repetidos que se transformam em palavras. Antes do ADN está o corpo. Não notou que a poesia dançou? E dança-se com o quê? Com o corpo. Não queira meter a biologia à frente dos corpos. Não é por aí.

E o que tem a dizer o senhor origem extraterrestre sobre esta dança da poesia?

-- Na verdade, só sei falar do futuro, porque vim de lá. E foi lá que vi pela primeira vez a poesia a dançar. A sua origem é, por isso, extraterrestre. O "primeiro astronauta" não é uma história da carochinha. Foi ele que, vindo do futuro, ensinou tudo aos homens, inclusive as palavras. Que seria deles sem nós? Umas bestas, sem capacidade de articular o que fosse. Quando a poesia se lançou no fim da dança a voar, lamento imenso, mas isso só é possível de fazer com uma nave.

E a senhora dona poesia o que tem a dizer sobre isto?


A poesia voltou a dançar, enlaçou-os a todos, fez deles um ramo, deixou-o secar até ficar dourado. Até ficar d'oiro, num outono de folhas suspensas no ar, iluminadas pelo sol. E fez de todas as teorias um ramo de flores dourado, porque não sabia argumentar.

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