terça-feira, 25 de junho de 2019

Quatro Estações


Passei o Inverno inteiro e parte da Primavera a ler a obra toda de René Guénon e a tirar apontamentos, páginas e páginas de apontamentos que ainda têm de ser revistos e absorvidos com mais precisão. No Inverno anterior a este Inverno passado dediquei-me à pintura. Fiz vários quadros que estão por aqui. Agora estou a trabalhar numa coisa que é parva mas é paga. Os meus vizinhos pensaram durante muito tempo que em casa só a arrumava e que saía de vez em quando para ir às compras ou dar umas explicações. A imagem que passo é a de uma dona de casa que às vezes tem mau feitio e outras é uma espécie de santa que ajuda toda a gente. Consigo passar sempre a imagem de alguma coisa que é bipolar, extremada na ira e na bondade. O que não se sabe é que sou polipolar. Tenho não sei quantos polos a puxar por mim que estou no centro. Divido-me por toda a parte. Devoro cinema, devoro livros, quando pego num autor não o largo, estou no chão horas a fio a pintar, enfeito as coisas à minha volta, tenho a pancada dos objectos que colecciono porque gosto de olhar para eles, exalto-me com as ideias, renego-as todas, penso nos anjos, no destino, no passado, indigno-me em voz alta com a política portuguesa, julgo e condeno, consigo perdoar com a regra de pedirem perdão primeiro, planto coisas na varanda na Primavera e na Primavera seguinte volto a plantar porque no Inverno estou demasiado entretida a pintar e a estudar e a trabalhar no que é remunerado, para tratar das plantas.
Vejo a paisagem como se fosse um espectáculo preparado, escrito, encenado com todo o cuidado. Escrevo neste blogue como se fosse uma espécie de trabalho de casa e me tivesse que justificar perante leitores inexistentes. Cozinho porque raramente vou a restaurantes, invento pratos e transformo os presentes em cobaias do gosto gastronómico. Há dois dias peguei numas postas de bacalhau que tinha demolhado e consegui cozê-las, grelhá-las e assá-las de maneira que ficaram secas de novo. O resultado foi bacalhau seco, tal e qual, estava no início. Mas há outras experiências que correm bem. Entre tudo isto divido afecto pelos cães e persigo-os quando fazem asneiras que eles tentam disfarçar. Os vizinhos às vezes são surpreendidos com bolos altos com creme branco e fofo onde enfio frutas. Olham espantados e aceitam. Depois dão-me frutas dos seus quintais que transformo em compotas e as volto a dar. Transformo objectos também. Há uns tempos enchi um espelho de lantejoulas, coladas uma a uma. E penso muito. Penso demais.
Os vizinhos voltam a pensar que sou uma dona de casa que sai de vez em quando para ir às compras e dar umas explicações mas a verdade é que sofro de transtorno polipolar (nem minas inteiras de lítio podem curar),  sou uma psicopata na arte sem misericórdia que transforma tudo noutra coisa e uma sociopata que não gosta de festas nem de baptizados e prefere parecer uma dona de casa que sai de vez em quando para ir ao supermercado e que desconfia de toda a gente que não se limite a pensar que sou uma dona de casa, que sai de vez em quando, e que ouse pensar que não seja mais do que isso.

1 comentário:

  1. E quem te conhece bem, sabe que o mundo não seria o mesmo sem ti... Um abracinho eterno...

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