quinta-feira, 20 de junho de 2019
A exactidão
Dizia a uma pessoa conhecida para largar a droga das sugestões porque se fôssemos por aí, o mundo inteiro e toda a vida era uma sugestão. Por acaso até é mas ao contrário. Enquanto a sugestão condiciona o gesto na maioria das vidas há outra espécie de vida na qual o gesto condiciona, limita e retém qualquer sugestão. Isso será entrar no âmago da vida ou nela como símbolo ou sucessão de episódios que, a determinada altura, e, sobre determinado ângulo, fazem sentido. Mas adiante, dizia que largasse a droga (porque é uma autêntica droga pelos comportamentos aditivos que provoca) da sugestão e que nem pensasse por um segundo que o deserto não se lhe seguiria. Não o deserto tentador, com personagens ou provações, porque esse existe sempre quer num modo de vida quer noutro, mas um verdadeiro deserto no sentido da palavra onde não há nada a não ser as sementes a germinar, a desenvolverem-se e a darem flor que, por lá, plantarmos. Nele, as personagens que houver são nossas e os acontecimentos são do mundo que não é o nosso reino. Andava com isto na cabeça quando ao ver um filme francês (ultimamente, os franceses querem recuperar o sentido de se ser humano por via do cinema porque andam tão duros, malcriados e abrutalhados uns para os outros que a única redenção está nas histórias cinematográficas que lhes lembram as relações humanas perdidas devido à americanização, ao medo do terrorismo, ao sentimento de pertencerem a uma espécie de aristocracia europeia e ao complexo de culpa colonial, o que é uma mistura explosiva), mas dizia que ao ver o filme francês alguém disse uma frase do género: "a solidão é a mãe da criação", o que ia ao encontro do que me ocupava os pensamentos. Mas, nem por isso concordo com ela. É possível criar rodeado de gente, de animais e de coisas. É mais o silêncio interior onde ecoa o que escolhemos e peneiramos o que queremos que ecoe. E ainda a liberdade total para o fazer. E ainda, e disso não se fala, aquilo que ecoa vindo do alto. Não se fala porque o "alto" entendido, hoje, pode ser tudo. Pode ser, mas não é. O transcendente é o que nos transcende e não o que nos acupa a mente e que, se estiver ocupada, nela não ecoa transcendente algum. Qualquer filosofia oriental mais corriqueira diz isto. Mas esta estranha forma de vida actual consegue encafuar o Rossio na rua da Betesga e tornou-se normal viver assim, donde advém essa distância relativamente a uma certa verdade primordial e que se traduz pelo não reconhecimento do belo, pela incapacidade de ver seres passando por dentro de seres como viajantes, pela impossibilidade de estabelecer relações exactas entre as coisas (daí a desgraça de relações humanas do mundo actual), pela total ausência de imaginação, pela impossibilidade de se viajar entre tempos, enfim, uma condenação às correntes de metal em vez de às asas d'oiro. O refúgio está nos antigos se quiseremos ser veículos de todas estas possibilidades e de mais algumas. A inconsistência nada mais é do que a ausência de memória destas possibilidades e a perda da vivência actual desse sentido primordial do ser que é paradisíaco.
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