terça-feira, 18 de junho de 2019

O Sol que gira



A arte efémera, quando é arte, está muito próxima do ritual sem que obedeça cegamente à forma dos ciclos. Ela contém a sabedoria do improviso e, por isso, de todas as fases cíclicas e contém a exacta noção de simultaneidade vertical temporal. É tão efémera, por isso, quanto um poema ou a arte em pedra de uma civilização. É efémera aos nossos olhos mortais e é eterna aos olhos imortais. Há uma tendência em Portugal para uma específica ligação ao tempo da Primavera pela quantidade de arranjos de flores que se fazem. O Tempo da Primavera é o do perpétuo nascimento. Há ruas que se cobrem com flores de papel. Há procissões nas quais os arranjos de flores são fundamentais. Há a explosão dos casamentos, há o dia da Espiga.
O génio da criação parece invadir o povo mesmo sendo arte efémera.
Ora René Guénon, aponta, e muito bem, a diferença que há entre "ser perpétuo no tempo" e "ser eterno", o tempo horizontal para o primeiro, o tempo vertical (o da simultaneidade entre céu e terra), para o segundo.
Minimizar a arte efémera é minimizar esse sacerdócio feito entre céu e terra.
Podemos escolher ser pedantes e pensar que a "eternidade" é a lembrança do que fizemos. Não passamos de pedantes. A eternidade conquistada é importante no plano terrestre para a perpetuação da própria ideia de pátria (ou mátria). Foi assim que Camões salvou pátria, nadando com os Lusíadas na mão que que Fernando Pessoa a salvou também guardando na arca (o nosso Noé), os seus escritos. A sua arte "não efémera", é extremamente importante no plano horizontal do tempo porque perpetua a noção da língua e por isso da pátria.
Dar só valor às formas de arte que se perpetuam por mais tempo no plano terrestre é sinal de ignorância e pedantismo. A arte efémera, movendo-se verticalmente confere ao artista humildade necessária para o fazer e produz efeitos tão invisíveis como os anjos (daí a sua ligação ao céu).
Da mesma forma que um génio é aquele que une o que aparentemente não tem ligação, um génio da arte efémera une aquilo que no exacto momento à sua volta (a sua matéria prima) não tem ligação. Um génio da arte efémera é um improvisador. Improvisa porque sabe. Não tem qualquer ambição senão criar beleza à sua volta. Contém em si a sabedoria de anos.
Nada do que estou para aqui a dizer é novo. É pelo constante improviso que a Natureza se mantém.
Das coisas mais difíceis que há na arte da pintura e do desenho é soltar a mão. Deixá-la voar, sem preocupações de exactidão e, no entanto, fazer qualquer coisa de exacto, captar o exacto movimento do espírito. O mesmo será para escrever, para dançar, para tocar um instrumento. Para ter ideias.
Há génios na arte "permanente" e há génios na arte efémera. Sendo que a permanente se estende no tempo horizontalmente, mesmo que estabeleça um diálogo com o céu, mesmo que seja inspirada por ele, e a efémera, tem uma duração muito curta e como a sua essência é o improviso possuí a ligação do "raio" ou seja uma ligação directa e simultânea com o céu exactamente por causa dessa humildade exigida. Torna-se eterna por não querer ser eterna. Normalmente os génios da arte "permanente" possuem um nome (sobretudo desde que a arte deixou de ser anónima, como deveria ser) e os génios da arte efémera não possuem nenhum nome porque não estão preocupados com a eternidade, sendo essa a condição de eternidade. Fernando Pessoa escreveu na adolescência: "Meu Deus, livrai-me de mim", numa intuição profunda que desenvolveu pela vida, criando outros que não ele. Como se, sem ler René Guénon, soubesse que o nome aprisiona o ser, o delimita e que a condição dos grandes deuses fosse a de não ter nome nenhum, numa busca do ilimitado. Estranhamente até o seu apelido parecia tender a isso, pela abstracção. Quando afirmo que encontro o Extremo Oriente no Extremo Ocidente, isso não se refere apenas à vaga esperança de que um dia o Sol desperte a Ocidente, refiro-me ao facto, e falo por símbolos, desse embrião já cá se encontrar. Qualquer importação apressada de uma moda de um Extremo Oriente é uma forma de não querer aprofundar a nossa própria cultura, a portuguesa, que por acaso guarda as memórias mais antigas e o futuro mais bonito. Nas pequenas coisas, como por exemplo, nesta ligação à Primavera e às flores, isso é visível. É só um devaneio ou para quem é pedante ou para quem não aprofundou, ou experimentou o que é exactamente o mesmo.

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