quinta-feira, 7 de março de 2019

Velhos trapos


Velhos trapos de intelectualidade arrastam memórias esfareladas, um pouco dos olhos doces de Camões para brandir uma espada de pau de vassoura, um pouco mas não demais de Pessoa, algo nele que fale de alma, de mar e de sal que cai sempre bem e uma politiquice de ocasião que sirva um qualquer radicalismo, uma qualquer intuição dele que sirva um rito orgíaco ou uma visão religiosa. Velhos trapos arrastados, um filósofo morto que ninguém conheça e que nos dê a conviniência da originalidade já que não há novidade. Arrastam-se autores como carrinhos de trapos dos sem abrigo da intelectualidade, um autor esquecido em mofo aquecido em nova edição de mini nicho, um qualquer poeta que foi maldito, hoje, só ridículo. Um historiador que fez furor hoje esquecido nas novas escavações. Arrastam-se prémios com nomes de personalidade para que haja confusão entre o nome do prémio e o nome do premiado. E os que sempre vendem porque uma vez venderam e ficaram a vender para sempre. E os lançamentos às dezenas que d'antes enchiam livrarias até às portas e que agora só têm as portas das livrarias que fecharam, e lançam em fnacs, restaurantes e acontecimentos privados. A filosofia estagnou à porta de Atenas, a poesia tornou-se num velho trapo e deixou de ser cantada, é dita com voz arrastada e olhos dramáticos como se à medida que fosse dita e não cantada fosse arrastada até à guilhotina. Sabedorias ocultas às pazadas desenterradas num campo arqueológico numérico, a única tecnologia a que a filosofia pode aceder para conquistar algum público criado na racionalidade dos zeros e dos uns da computação. As correntes da escrita dos vaidosos e dos aspirantes a vaidosos que tontos ainda sonham com uma elite de escritores que só a são porque vendem e já não surpreendem. Trapos de público arrastando-se entre o que ouviu dizer e a ausência de rumo e, quando o têm, é a política que nele pulsa e que o agita, como nova religião que nos há-de conduzir a todos à salvação. Trapos de intelectualidade sempre de candeias às avessas com a outra metade da intelectualidade, pensando ainda assim que a intelectualidade, só por si, é superior à verdade. Tantos trapos velhos cinzentos e de branco sujo, obrigando-os a construir um altar interno e cheio de cor, onde as fotografias antigas e os fotogramas dos que foram para a luz do outro lado, são retocadas todos os dias. Velhos trapos de indecente falta de vida. De indecente falta de chama. De evidente infâmia, de ausência de sabedoria, de retorcidos esforços para cruzarem as pernas da impassibilidade de primeira fila. Nem fogo, nem gelo, mas mornos como o caldo entornado pela mesa das ideias esbatido no padrão das flores da paz e do amor que todos proclamam como misses que se sentem um pouco mais aristocratas por terem biquínis estampados com versos de Pessoa. Ou de Sofia. Ou de Clarice ou enfeitados com um excerto do walter que ainda não descobriu as maiúsculas quanto mais a capital.

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