quinta-feira, 7 de março de 2019

Inquisição Endógena




"Por isso as minhas cartas não têm interesse de maior e nas minhas palavras haverá sómente o traço viril de uma ironia amarga, e de um despeito calmo em relação àqueles que me queimaram, em efígie, acendendo fogueiras nas encruzilhadas. Sabe a quem me refiro e desculpe lembrar-lhe o rei Lear, de dentro desta escura mania da perseguição."

António Telmo, correspondência para Álvaro Ribeiro, Carta III, in "Capelas Imperfeitas", ed. Zéfiro, pág. 136



 

Interrompo este diálogo, numa altura em que a exposição e a divulgação de autores já desaparecidos parecem ser os únicos caminhos seguros para quem quer sobreviver neste meio que se tornou um saco de víboras. Agora piorou tudo. Surgiu uma coisa chamada Internet e outra lá dentro chamada facebook e muitos se deram conta que finalmente podiam criar a personagem que vivia dentro deles e que disfarçavam na hipocrisia, podendo fazer a vida negra a quem iniciava alguns passos num mundo que se julgava composto por pessoas credíveis e interessadas genuinamente, ou nalguma filosofia, ou nalguma espiritualidade ou em ambas.
Mas algo aconteceu, também, que foi uma certa desmontagem psicológica daquilo a que chamo Inquisição Endógena Portuguesa. Conseguiram, certas cabeças, interessar-se, não só pelo lado da Inquisição propriamente dita, mas também pelos efeitos que esta provoca a quem é vitima das suas garras. Assim, estabeleceu-se uma espécie de padrão de reacções, muito ao gosto dos médicos nazis. Funciona como uma lista interior que diz coisas parecidas com isto: se lhe cortarmos o membro A, tem a reacção A1, se for o membro B, tem a reacção B1, e por aí fora num conjunto organizado acrescentado pelas várias probabilidades de conjugação de letras e números. Assim, partem do princípio, de que uma das maneiras de queimar efíges nas encruzilhadas - precisamente nos pontos de maior sensibilidade na vida, é aí que os apanham - é conhecer e controlar o velho adágio de que, todos, sem excepção, não são mais do que um amontoado de reacções àquilo que os cerca.
Desta forma atacam pela frente virtual e pela frente tradicional, sendo porventura, nalguns casos, esses métodos de ataque aprendidos nalgumas escolas "iniciáticas" e aplicados indiscriminadamente a quem quer que se aproxime simplesmente do meio, mesmo que nunca tenha pertencido, nem tenha querido pertencer a tais escolas. De modo que isto se tornou numa selva. Algumas dessas práticas consistem num manejo da roda - a mesma utlizada na Inquisição - de maneira a que quem quer que se aproxime, não só seja afastado no fim, ou saia por livre iniciativa (esta última é mais vantajosa), como, nos entretantos, entre o sai e o não sai, vá debitando na sua raiva e no seu sofrimento, ideias para os torturadores. Fazem lembrar aqueles padres que se masturbam no confessionário quando as prostitutas lá vão, ou simples pecadores que, ao revelarem o seu pecado, ficam imediatamente com o estatuto das mesmas no instante e enquanto dura o relato.
Constata-se, então, que isto está bem pior. Este tipo de Inquisição é endógena porque já vem dos tempos das denúncias  para o "Santo" Tribunal, mas tomou requintes diabólicos e a sua "justiça" e os seus "métodos" para a obter, são aplicados indiscriminadamente. O único propósito é afastar quem lhes faça sombra de alguma maneira, coisa que não é difícil porque a maioria das personagens é bastante sombria com propósitos que levariam qualquer um a deitar as mãos à cabeça e a fugir dali para fora.
Como existe uma total falta de qualidade e, os verdadeiros nomes que, mesmo com queimaduras, prosseguiram a sua obra, já se encontram do "outro lado da vida", resta a "divulgação" dos mesmos e quando se quer "afirmar" alguma coisa convém levar o enorme escudo da bibliografia, muito à maneira das teses académicas (academismo que dizem desprezar mas a cuja metedologia defensiva têm de recorrer se querem sobreviver no saco de víboras), uns fazem-no editando, e estão completamente defendidos, outros fazem-nos em ensaios de análise, outros faximilando ipsis verbis o passado escrito e fazendo com eles compêndios ideológicos com tendência a escolher bem o que transcrevem de maneira a levar avante o seu ideário pespegando-o, com maior ou menor intensidade, no subconsciente dos leitores, o mesmo que já se faz em publicidade há muito tempo em mensagens subliminares. Se lhes perguntarem, negam tudo... numa tentativa de serem Judas de Judas mas que ainda assim não os redime porque nestes caminhos do espírito a lógica é uma disciplina menor, e a dupla negação não funciona.
Os heróis destas histórias que de tão esquizofrénicas já se tornaram histórias aos quadradinhos, são aqueles que, ao contrário de António Telmo, não sentem nem confessam despeito. São os que vão com o peito inteiro, embora oco, (tendo alcançado a aparente impassibilidade que defendem algumas escolas orientalistas serem apanágio dos mestres), por aí fora com a certeza de que a sua obra marcará o tempo a ferro e fogo como o tinham feito aqueles que consideraram seus mestres. Os heróis, são os que conseguem, depois de terem afastado, não as sombras, mas todos os que lhes poderiam, no seu fraco entender, fazer alguma sombra, manter um público entre o tímido, o fascinado, o obcecado e o ambicioso nalguns casos, e fiel que os siga onde quer que apareçam. Aos desvairados despeitados resta-lhes o afastamento, rugindo, de vez em quando, a sua raiva, lambendo as feridas, como animais, num qualquer canto escuro onde espiem alguns movimentos para se manterem à defesa, não vão as víboras andarem por aí.
De modo que, lendo seriamente estas palavras do Telmo, não é difícil de as acharmos verdadeiras, séculos de Inquisição hão-de ter entrado, de alguma maneira, na constituição genética dos portugueses e não há classe social ou intelectual que a ela estejam imunes. Do que podem carecer, estas palavras, é de alguma actualização, porque a tecnologia tomou conta de tudo e os métodos refinaram-se, bem como alguns propósitos. A maioria dos novos propósitos tem em vista apenas a produção, em número, não em qualidade. Outros gostariam de se destacar numa qualquer escola. Outros ainda, simplesmente, de poderem ser reconhecidos na rua porque apareceram na televisão. Os mais loucos julgam ter poder. Mas, como a tecnologia tomou conta de tudo, e todo o conhecimento tem de ter um propósito prático e efectivo, não sei se as filosofias, tal como as conhecemos, não terão os dias contados, e mesmo que, o propósito maior da filosofia sem uma simples presença, o tal motor imóvel, a verdade é que, o ensino das humanísticas, aquele que resta, será cada vez mais feito por ratos de computador e menos por ratos de biblioteca, e, embora alguns heróis vencedores de todas as batalhas, o neguem, são ratos de espécies diferentes. No entanto, ambas as espécies vivem no mesmo ecossistema que permanece um saco de viboras, cada qual com os seus impulsos inquisitoriais de há séculos. Com matéria prima desta o país não vai a lado nenhum. 



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