quinta-feira, 28 de março de 2019

Nos olhos, na cara, nas palavras


O que lhe estava estampado na cara, confuso nos olhos e atabalhoado nas palavras era o facto de ter passado pela vida sem fazer ideia do que isso era. Dizer "a vida é assim" é a mais antiga fuga ao entendimento e até mesmo à capacidade de raciocínio. E nem isso dizia. Chega-se, por vezes, a um ponto, na velhice, em que essas palavras, "a vida é assim" já estão gastas de tanto serem ditas. Não vi sequer curiosidade. Era um estado de confusão total. Nem uma pergunta sequer. Estive mesmo para lhe dizer, em jeito de pobrezinha: uma perguntinha, por favor. Mas nada. Há pessoas que morrem numa autêntica tempestade e, por fora, parecem idosos normais. E são idosos normais. O estado de confusão, que não é demência nem outra doença do foro psiquiátrico, é o aglomerado de ondas, de ventos, de nuvens pelos quais passaram a vida inteira. Podem até parecer serenos mas aqueles olhos dizem logo tudo. As palavras, também. Morrem sem saber que alma têm, como disse Fernando Pessoa no fim da Mensagem. Ora, a primeira coisa é não perder a alma que espreita mais na infância e que facilmente se perde pela vida fora. Não saber da alma é andar com ela perdida. Para quem pelo menos faz um esforço para não a perder por aí ou faz um esforço para a encontrar, então sim, deixa as ruas secundárias da cidade e encontra-se em dia de festa no largo da aldeia à porta do templo (passei da cidade para a aldeia de propósito, não é erro no texto). Mas ainda e só à porta do templo e já é muito bom.  As almas perdidas não são o oposto das almas salvas. São simplesmente o contraponto da demanda. Da salvação, sabe-se lá... Isso não é connosco, é somente uma possível consequência da demanda. Os pobres, à porta da igreja, pedem uma moedinha. E talvez seja também uma daquelas que nos deram e que devíamos multiplicar. Os dons. Os dons concedidos à alma. Só então se pode dar como deve de ser, ou seja, em total sintonia entre o alto, o baixo e o assim assim. E é tão difícil isso. Doloroso mesmo. As portas manuelinas são maravilhosas porque dão toda a importância à porta. Todas trabalhadas. Só para se fazerem portas assim era preciso ser mestre. Só a porta. Entrar lá para dentro é complicado. É ir ainda mais longe na viagem. Já escrevi algures por aqui que é frequente encontramos o sol e a lua lado a lado nas portas dos templos. A dificuldade desse equilíbrio é total. Quem o consegue, sabe que alma têm. Daí que a arte presente nas portas seja sinal de mestria. De se saber o como. Há certas situações em que ver o símbolo não é um delírio poético-fantasista. O símbolo está simplesmente lá. Mas não é só em certos idosos que encontro os olhos, o rosto e a palavra de quem não sabe de si. É em todas as idades. E com eles vem sempre a ausência de uma pergunta. Que é o que dói mais ver. Se não têm apetite definham... daí o nevoeiro do poeta e essa ilha, como alma encontrada, próxima e remota. Ocultando-se e desocultando-se ao longo de vidas, intermitente demais. Estamos cada vez mais submersos no facilitismo ao nível do ensino, isto é dito por várias pessoas. Mas esse facilitismo no ensino corresponde depois à frase "a vida é assim" sem se fazer a mínima ideia do que é a vida. Viver não significa saber o que é a vida. São coisas tão distantes como o saber ou não fazer uma porta manuelina de raíz, e não copiá-la de qualquer modelo. A Anarquia Superior, é a Monarquia Interior. E só depois se pode dar sem que ninguém nos diga para dar. E só depois se pode esculpir uma porta de raíz, sem que ninguém nos diga como fazê-lo. E isso é o contrário do facilitismo. Alcançar só isso é tão difícil como saber dizer que a vida é assim e explicar porquê à medida que se vai esculpindo, unindo, dessa forma, o alto, o baixo e o assim assim. E hoje? Quem faz uma porta manuelina de raíz com as suas próprias mãos? Quem faz a sua própria porta para poder entrar e sair para dar como deve de ser e não com gestos atabalhoados e consequências inconsequentes?

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