Louis Charpentier no seu livro “Santiago de Compostela –
Enigma e Tradição” [Minerva ed. 1971], levanta a hipótese, entre outras coisas que vai sugerindo,
que existia uma rota de França até Santiago de Compostela mais antiga e, de
certa forma, paralela à posterior. Diz, na página 182, apontando a data de 1025
que “É nessa altura que se organizam os Caminhos de S. Tiago em França que
estão na origem da quantidade de mosteiros, de pousadas, de hospitais que
sabemos. É esse excesso mesmo que nos revela o verdadeiro objectivo da peregrinação
a Compostela. São caminhos de construtores. Sem dúvida que vemos aí desfilar
penitentes, místicos, ladrões de estrada e peregrinos, mas os construtores
seguem em frente, não como penitentes nem como místicos, mas como construtores,
como aprendizes, candidatos à iniciação.”
A ideia é que, o caminho era, ele mesmo, uma fonte de
aprendizagem do ofício de construtor, as paragens nesse caminho, locais de
ensino e o culminar, perto do oceano Atlântico, o Ocidente, corresponderia ao
ensino adquirido de uma vez por todas, ou seja, a mestria na arte. Pode ler-se
nitidamente, nestas linhas, a separação entre o misticismo e a iniciação. Há
uma rota pré-definida de saber. A pé-definição de uma rota de sabedoria nada
tem a ver com a concepção de destino, noção passiva e apropriada ao misticismo,
passivo e de uma outra ordem de ideias. Daquilo que o texto fala é dos “candidatos”
à iniciação, o que pressupõe, naturalmente, um acto voluntário e objectivo na
decisão da tomada desse caminho. Quando olhamos para trás há sempre um destino
(como a pescada que antes de ser já o era), quando olhamos para a frente há uma
candidatura à iniciação. Retirar a capacidade de improviso dos deuses é
diminuí-los…
António Telmo chamou a atenção para a existência de duas
matérias-primas distintas, a madeira (elemento vegetal) e a pedra (elemento
mineral) situando o primeiro como tendo sido o original, o mais arcaico. A
ordem não é tão importante assim, mas o efeito é. A precisão necessária à pedra
não apela directamente à improvisação, ao gesto solto. O elemento vegetal incita
ao acompanhamento dos ritmos da própria natureza aliando o improviso ao rigor.
Obriga a uma interiorização da natureza, a tal ponto, que se possa reproduzi-la
libertando-lhe o espírito. Na pedra, é o rigor da medida e do número (presentes
desde o desenho inicial que é pensado até ao peso, textura, e características da
massa e espaço ocupado por essa massa) que permite o reflexo sonoro e visual do
espírito. Ele surge-nos por reflexo e pelo espaço que permite a circulação do
éter. No elemento vegetal, ele surge-nos
pelo éter em si e, como tal, surge-nos como uma substância concreta, ou na
substância concreta, mais exactamente. A pedra funciona por vibração, o elemento
vegetal por fusão. Ambas se efectuam no espaço. Na pedra a geometria é visível,
no elemento vegetal fica invisível, camuflado pela beleza que é a pele da
natureza. Mas uma pele que se funde com o éter quando este é liberto por via
desse acompanhamento desse ritmo e comportamento da natureza. É a própria
natureza que responde infundindo a sua própria substância secreta no corpo,
activando, por sua vez a substância secreta que há no corpo. O som da pedra
pode fazer o mesmo em conjunto com o magnetismo. As linguagens são, porém,
diferentes, até porque as rotas são também diferentes. Numa a rota de
aprendizagem está pré-definida, como o caminho de Santiago, e daí a sensação
que dá de haver destino. As construções são pensadas, pré-estabelecidas, com o
elemento vegetal, e como há fusão com o próprio percurso da natureza, a
essência da “candidatura” que é uma eleição pré-estabelecida mas cujo o
desfecho, como “eleição” pode ocorrer ou não, essa sensação de destino fica “atordoada”
e revela-nos que a interiorização dos ritmos da natureza, mesmo sendo cíclicos,
como aliás são, nos conduz à sintonia perfeita que existe entre nós e a figura
geométrica da espiral, mais de acordo com o determinismo que se casa com a
vontade. António Telmo não errou ao falar do elemento vegetal como sendo o
original como matéria prima e, sendo o original, será o que está mais perto da
fonte. A Tradição há-de integrar tanto os ciclos como os “saltos quânticos”. Há
mutações que são produto da técnica e da repetição dessa técnica e há outras
que funcionam simplesmente porque a sintonia existiu. O elemento vegetal
permite o discorrer do aleatório, abre ali uma porta à imprevisibilidade que é um
dos atributos do Espírito Santo. A instantaneidade é a sobreposição de muitos
elementos e de muitos contextos e a instantaneidade é a fusão. E dentro da
fusão há aquela reviravolta que é a criação. Um ponto. Um único ponto em que
ela se dá. Que René Guénon diz não ter dimensões… No entanto, para dizer a
verdade, qualquer Arte possui esta capacidade. Tanto a Arte da Pedra como a Arte
do elemento vegetal. Se a geometria está mais exposta na pedra, e menos no
elemento vegetal, onde se encontra camuflada, a linguagem, por sua vez, está
mais exposta no elemento vegetal e menos na pedra, ou seja, a geometria obriga à
demonstração por via da linguagem, o elemento vegetal, no qual a linguagem é
explícita, obriga apenas à presença, porque a presença funciona no plano da instantaneidade.
O que é curioso é René Guénon falar em Jardim Terrestre e em
Cidade Celeste e da passagem do elemento vegetal, para o elemento mineral como
ponto culminante. Imaginamos logo uma cidade com prédios ou com os tais muros
com pedras preciosas, tudo muito brilhante e, sobretudo, estável e fixo (a
fixação é a irreversibilidade iniciática). E esquecemo-nos de uma coisa fundamental:
as plantas alimentam-se de sais minerais, de gás carbónico e da Energia do Sol.
Vai buscar ao solo os sais minerais e vai mais acima buscar o restante. E, se
há fusão, com o ser humano, então temos a composição da cidade celeste como
qualquer coisa que é possível de existir dentro dos nossos próprios minérios. A
instantaneidade é mesmo surpreendente. A cidade sobreposta ao jardim.
Coincidente. Por isso é que a tábua esmeraldina é verde. E Portugal é um Jardim.